Reflexões

De 26 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2004

Há um livro de Stefan Zweig que deveria ser lido por todos os europeus preocupados com o nosso futuro. Em “O Mundo de Ontem. Recordações de um Europeu”, obra póstuma, publicada em 1944, o escritor austríaco desenha a placidez e o optimismo dos primeiros anos século XX. Nada fazia adivinhar a eclosão da barbárie. Nada anunciava os campos de concentração, a intolerância, a cegueira, a loucura colectiva…

Há um livro de Stefan Zweig que deveria ser lido por todos os europeus preocupados com o nosso futuro. Em “O Mundo de Ontem. Recordações de um Europeu”, obra póstuma, publicada em 1944, o escritor austríaco desenha a placidez e o optimismo dos primeiros anos século XX. Nada fazia adivinhar a eclosão da barbárie. Nada anunciava os campos de concentração, a intolerância, a cegueira, a loucura colectiva… A Europa parecia ser um lugar pacífico, orgulhoso do seu progresso. Havia o culto da juventude. “O mundo não só se tinha tornado mais belo, mas também mais livre”. Não havia, aparentemente, sinais inquietantes. Em cada novo momento surgiam motivos de satisfação. Que continente extraordinário era a Europa das grandes avenidas, das comodidades, da água quente e do telefone, dos teatros, das novas bibliotecas e dos novos museus. “Os dias marcantes da nossa existência tinham maior luminosidade do que os dias comuns”. Nunca a Europa tinha sido tão poderosa, tão rica, tão bela. Nunca tantos tinham acreditado tanto num futuro radioso e inexorável. Zweig conta, de modo empolgante, a sua visita a Romain Rolland. Mas, a terminar, refere “que sentiu que ele se afligia pela fragilidade do que construímos no mundo”. E isso era tanto mais estranho e inesperado quanto era verdade que esse intelectual sempre tinha acreditado e celebrado a eternidade da arte. Como poderia ser assim? Afinal, a arte e a sua eternidade poderiam “consolar cada um em particular”, mas nada poderiam “contra a realidade”. Essa frase desencadeou em Stefan Zweig um alerta interior. No fundo, para o autor de “Jean-Christophe”, seria nosso dever não nos mostrarmos imprevidentes e inactivos em face de uma guerra que se aproximava. De nada valeriam solidariedades e amizades entre espíritos superiores, se tudo se precipitasse. Porém, o mundo pouco se importava com as inquietações dos pensadores e dos profetas. As nacionalidades e os egoísmos faziam crescer os sinais de incerteza e de dúvida. De nada valiam os acordos de família entre as casas reinantes. As massas faziam a sua entrada retumbante nas salas da História. A Áustria passou a estar no epicentro dos acontecimentos. Um imperador ancião estava perante um instável castelo de cartas. De um momento para o outro, as nuvens negras começaram a acastelar-se no horizonte. “Para ser sincero, na época, eu não acreditava na guerra”. Mas havia indícios a acumular-se, insusceptíveis de enganar fosse quem fosse. Apesar disso, “tudo se apresentava unido e claro a meus olhos”, “o mundo oferecia-se-me belo e carregado de sentido como um fruto delicioso nesse Verão luminoso”. E, de súbito, no dia 28 de Junho de 1914, ocorreu em Sarajevo o “tiro, que, num segundo, fez voar em mil pedaços, como um vaso de terra oco, esse mundo da segurança e da razão criadora, no qual tínhamos sido educados, no qual tínhamos crescido e onde nos sentíamos em casa”.

Guilherme d`Oliveira Martins

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