A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«La Littérature en Péril» de Tzvetan Todorov (Flammarion, 2007) é um alerta contra a perigosa rutura entre a literatura e a vida, a criação e a humanidade. Em diversos momentos desta obra, o ensaísta franco-búlgaro recorda-nos Dostoievski e o sofrimento das suas personagens – e considera que é a compreensão da realidade humana, mais do que as análises formais e teóricas, que nos aproximará dos outros e de nós mesmos, como singularidades irrepetíveis em busca da dignidade.

A VIDA DOS LIVROS
de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2014


«La Littérature en Péril»
de Tzvetan Todorov (Flammarion, 2007) é um alerta contra a perigosa rutura entre a literatura e a vida, a criação e a humanidade. Em diversos momentos desta obra, o ensaísta franco-búlgaro recorda-nos Dostoievski e o sofrimento das suas personagens – e considera que é a compreensão da realidade humana, mais do que as análises formais e teóricas, que nos aproximará dos outros e de nós mesmos, como singularidades irrepetíveis em busca da dignidade.

UM DEBATE NECESSÁRIO
Há dias, numa iniciativa idealizada por Vasco Graça Moura e concretizada por Helena Buescu e António Carlos Cortez, no CCB, falou-se da «urgência da literatura» como responsabilidade educativa. O debate foi sereno, como deve ser a reflexão sobre um tema tão sério como este da defesa da língua portuguesa ou da exigência na sua aprendizagem. E não esquecemos o que Vítor Aguiar e Silva disse: «a língua portuguesa é a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal». É verdade, mas tal obriga-nos a especiais responsabilidades no culto do bom domínio do idioma, na sua preservação e na respetiva afirmação no mundo dos saberes. E Mário de Carvalho trouxe-nos a oportuníssima recordação de António Ferreira, no seu louvor à língua, na célebre carta a Pero Andrade Caminha: «Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / A portuguesa língua, e já onde for / Senhora vá de si soberba, e altiva. / Se téqui esteve baixa, e sem louvor, / culpa é dos que a mal exercitaram: / Esquecimento nosso, e desamor». Falar bem a língua é um ato de cidadania. Não há nitidez de espírito, sem ideias claras e distintas. Não há conhecimento sem contacto com os autores e com os textos originais. E, infelizmente, assiste-se ao uso e abuso dos resumos e simplificações – ou à tentação de confundir comunicação com mera descrição jornalística ou linguagem comercial. Num tempo de multiplicação de informações, chegamos ao estranho paradoxo de nos satisfazermos com mensagens rápidas e sincopadas, que pretendem condicionar as opiniões, pondo de lado a complexidade e a necessidade de explicar, de demonstrar, de justificar – formulando juízos primários. Perante temas e problemas cada vez mais complexos, deparamo-nos com comentários rápidos e incapazes de considerar o essencial. Montaigne, na entrada da sua torre, perguntava apenas: «que sais-je?» – e aí encerrava a exigência de um caminho muito árduo para conhecer e compreender. Por isso, dizia que mais valia uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia… E aqui está a necessidade de cultivar especialmente o pensamento. Afinal, quanto menos se ler menos se há de pensar. Eis-nos perante uma condição de liberdade. E qual o efeito das caricaturas do conhecimento e da aprendizagem, como se a simplificação e a infantilização fossem o caminho? O resultado é a pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem nas exposições, a mistura de argumentos e conclusões e a indigência das ideias. Tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença relativamente ao aprender e ao dizer. Lembramo-nos do que Vieira afirma no Sermão da Sexagésima: «(O lavrador evangélico) semeou  uma semente só, e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade não podem colher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para o vento, outro assunto para outro vento, que se há de colher senão vento?».

LÍNGUA. LEITURA E LITERATURA
Impõe-se, pois, saber relacionar saberes básicos. Estes pressupõem competências e capacidade para saber falar, relacionar, interpretar, discorrer, demonstrar, justificar, ponderar os diferentes valores e saber representar o conhecimento. Pico della Mirandola considerava que as «humanidades» iam do conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao espírito filosófico e científico – nada do que é humano pode ser-nos estranho. É, pois, indispensável aprender a ler o mundo que nos cerca nas suas diferentes expressões, a literatura começou por partir da oralidade (os grandes poetas da Antiguidade construíram provavelmente assim as suas obras – a «Ilíada» ou a «Odisseia»), hoje herdámos a paixão do livro por força da maravilhosa descoberta dos carateres móveis de Gutemberg, mas só há leitura fecunda se houver prazer nela, a leitura deve ser aprendida como exercício de liberdade e de escolha, tem de haver capacidade de relacionar cada livro com o que se conhece e leu anteriormente, e temos ainda de entender a emergência de novos meios de comunicar – o cinema, a televisão, a internet, com que temos de aprender a lidar. Eles próprios podem favorecer a leitura. Tzvetan Todorov fala-nos da «Literatura em Perigo», e afirma: «Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende tornar-se-á não um especialista de análise literária, mas um conhecedor do ser humano». É assim o mundo da vida que está em causa, o que permite dizer que a atenção e a capacidade de perceber é que importam.
Muitos discutem o futuro do livro. Contudo, ele não desaparecerá. Importa, sim, compreender que haverá novas formas de lidar com os livros. Como instrumentos estão a sofrer alterações significativas, tal como acontece na imprensa escrita. A motivação para a leitura ganhará, porém, novos meios e adeptos. Hoje lê-se mais do que há meio século, até pelo alargamento das habilitações escolares da população, mas há o risco de se ler pior, ainda que, paradoxalmente, os melhores leitores sejam melhores… Há transformações profundas e perigos indiscutíveis. Daí devermos cuidar dos temas urgentes e sensíveis da educação, que indico telegraficamente: temos de melhorar o ensino da língua materna (na leitura e na escrita), sem um bom domínio da língua não poderemos aprender bem idiomas estrangeiros (indispensáveis para a globalização), temos de ser mais exigentes no estudo da história (no entendimento do tempo, da diacronia e da sincronia), da geografia, da matemática e dos conhecimentos científicos e temos de apoiar seriamente o ensino artístico. E se queremos riqueza vocabular, ordenação de argumentos, rigor na exposição e desenvolvimento das ideias – precisamos de cultivar a comunicação e a palavra, de exercitar a memória (ler, repetir, representar a poesia e o teatro), de incentivar a criatividade. Almada Negreiros dizia: «o teatro é o escaparate de todas as artes. Todas as artes são todas as peças da mesma coisa». Educação, cultura e ciência estão intimamente ligados. Língua, leitura e literatura têm de andar a par. Urge compreender um texto, lendo-o no original; relacionar as diversas formas de criação artística, representar poética e simbolicamente as ações, as virtudes, as misérias e os sonhos. Alberto Lacerda tinha razão ao dizer: «esta língua / é minha Índia constante / minha núpcia ininterrupta / meu amor para sempre / minha libertinagem / minha eterna / virgindade» («Oferenda», I).

Guilherme d’Oliveira Martins

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