A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Memórias para Após 2000” de José-Augusto França (Livros Horizonte, 2013) é um bom exemplo, como o foram, aliás, “Memórias para o Ano 2000”, de como podemos sentir o pulsar de uma vida culta e atenta, disponível para pensar e para usufruir dos prazeres da criação e da arte. A leitura é fácil e sentimos a cada passo uma empatia natural com o cicerone que nos guia.

A VIDA DOS LIVROS
de 13 a 19 de janeiro 2014

“Memórias para Após 2000” de José-Augusto França (Livros Horizonte, 2013) é um bom exemplo, como o foram, aliás, “Memórias para o Ano 2000”, de como podemos sentir o pulsar de uma vida culta e atenta, disponível para pensar e para usufruir dos prazeres da criação e da arte. A leitura é fácil e sentimos a cada passo uma empatia natural com o cicerone que nos guia.


Foto de Ângela Camila Castelo-Branco.

INCANSÁVEL INVESTIGADOR
José-Augusto França é um incansável investigador do tempo. As suas memórias são um precioso roteiro para a compreensão dos acontecimentos do mundo – nossos permanentes e insondáveis mestres interiores. A história só é compreensível nessa encruzilhada entre factos quotidianos e ocorrências marcantes. Uns e outras misturam-se nestas Memórias e a sua importância relativa projeta-se inesperadamente no amanhã. No início de tudo, há a invocação de Rogério de Moura, o editor dos Livros Horizonte, cuja memória é recordada no pórtico do livro. O autor sente a sua falta – e quantos o conheceram e com ele privaram reconhecem-se nesse preito (e eu pessoalmente não esqueço a amizade que nos unia). Com justiça, lembra a sua excecional sensibilidade de editor com rara perspicácia, que lhe permitiu publicar obras fundamentais, em nome da liberdade e da qualidade. A publicação de «Lisboa, História Física e Moral» foi das suas últimas grandes iniciativas. Depois, há a referir a capa e a escolha de uma obra de António Pedro, que estivera para estar no anterior volume de memórias – «O Avejão Lírico» (1939), que J.-A. F. bem conhece. O avejão «ameaça assombrando» a cidade. Será o crítico – «apontando por dever de ofício, mesmo literariamente imaginário, o pecado que o autor comete»? A opção não casual, é mesmo a dualidade do crítico e do autor que aqui se quer assinalar, associando-a a António Pedro, para quem as dimensões pictórica e poética se entrelaçavam sempre, no inefável teatro da vida.

À VOLTA DO JARDIM DA ESTRELA
Depressa descobrimos o roteiro da Lisboa de J.-A. F.. Antes de mais, o Jardim da Estrela, à beira dos patos e dos gansos do lago: «pergunto-me se não devo dizer, para ser mais claro, que Lisboa (para não dizer Portugal inteiro!) é, para mim, finalmente, só o Jardim da Estrela?». Depois, «tirando o Jardim da Estrela, e apesar de outros locais académicos ou universitários e mais nacionais, é o Grémio Literário o meu sítio mais frequente, e mesmo empenhado, em Lisboa, pelo século XXI dentro». A capital de Lisboa é o Chiado e a capital do Chiado é o Grémio. Lá estão os fantasmas de Rodrigo da Fonseca (o autor dos estatutos) e a variada companhia do cartista fiel Herculano e do setembrista Garrett – numa «associação com fim de cultura das letras e que pela ilustração intelectual podia concorrer para o aperfeiçoamento moral» do país. O Grémio Literário fundou-se dois dias antes de rebentar a revolta da Maria da Fonte, três antes do Teatro Nacional e no ano da criação do Banco de Portugal – «numa coevidade ilustre e mesmo significativa». E, em falando de espíritos a povoarem aqueles salões, chegamos a Eça e à sua inesgotável geração e, ainda, a Almada e a Pessoa – «dois homens que se cruzaram no tempo e no lugar: Almada diz o que diz, Pessoa diz o que não diz»… Mas, continuando nesse roteiro, chegamos ao Monte Olivete e à Cotovia, que «partilham a toponímia tradicional, algo confusamente se sobrepondo, e sobretudo, que os nomes surgem onde não pareciam dever estar como no morgadio dos Soares da Cotovia que descia a S. Bento e ia ao Rato, defronte do sítio jesuíta, e onde Monte Olivete fora». Essa foi a «aldeia» do memorialista, bem lembrado de dois «conterrâneos»: Ruben A., autor da admirável «Torre da Barbela», vizinho «com conversas esbracejadas de janela para janela»; e Alexandre O’Neill, imaginoso poeta de «No Reino da Dinamarca»…

O CÉU AINDA PODE ESPERAR
Com fino sentido de humor (que Rui Mário Gonçalves bem recordou na apresentação do livro na Sociedade de Belas-Artes), J.-A. F. imagina uma conversa imaginária com S. Pedro às portas do Empíreo. O diálogo com o primeiro dos Papas ia começar quando o autor acordou num quarto do Hotel dos Templários, ao lado da Várzea Pequena, lembrando outro despertar também em Tomar nove décadas atrás. «Foi bom, meu filho, foi bom», comentou o Santo Padre, «que o fim e o princípio, o alfa e o ómega, devem encontrar-se». Mas (para o autor) o céu pode (ainda) esperar, como ensinou Lubitsch. Estas memórias são, assim, deliciosamente feitas ao correr da pena, com uma notável cópia de bons pormenores, de uma agenda cuidada e rigorosa (e tenho paixão por esse pequeno instrumento). Percebemos por que motivo J.-A. F. desatou a escrever romances e contos – e os seus leitores compreendem e agradecem. «A receita é simples: senta-se o autor e repara, ou traz já no ouvido uma frase que lhe veio à boca, de descrição, situação ou diálogo, e a partir disso, que alavanca é, se escreve rapidamente o conto, ou o quadro ou a cena, em confusão pacífica de géneros, que podem ser assim ou assados»… «Bela Angevina» leva-nos misteriosamente, entre buscas vãs, a José Maria Eça de Queiroz. Os «Exercícios de Passamento» permitem-nos entender o cerne do género biográfico, no momento crítico por excelência. Os estudos sócio-culturais (anos X e XX da dita Revolução Nacional…) são preciosos repositórios de enquadramento, que permitem ir além da cronologia ou da magia das listas de acontecimentos.

CONTAS COM A VIDA
Sentimos um ajustar de contas com a vida – «porque o fiz e continuo a fazer, já o expliquei, por lembrança antiga de um fio, que diz o Eduardo Lourenço, sacrifiquei (mesmo que fosse “em beleza”…) por necessidade minha de ver gente viva…». E o escritor continua a sua revelação: «a minha ficção é assim mesmo – dos outros». Percebe-se a natureza do leitor sistemático: Tolstoi, Proust, Joyce… As invocações sucedem-se: a importância do museu de Tomar, a relação especial com o Museu do Chiado, a comissão do património da UNESCO (a convite de José Sasportes), o Conselho Editorial da Imprensa Nacional, a mesa A-15 da Biblioteca Nacional e os gabinetes de reservados (dessa instituição de tão sólidas e justas tradições), as Universidades, a luta inglória para a salvação da casa de Almeida Garrett na velha rua de Santa Isabel, em frente ao cemitério dos ingleses, a lembrança do saudoso Paulo-Guilherme d’Eça Leal e do seu estudo imaginativo e encantatório sobre os Painéis de Nuno Gonçalves na Batalha ou as celebrações das nove décadas de vida, com uma jovialidade invejável… Na contracapa do livro encontramos a fotografia da casa francesa – «Le Pavillon», edifício de 1911, em Jarzé, no Anjou, onde Mahité (que em menina fazia servir o chá às visitas da avó e já da mãe) e J.-A. F. passam seis meses por ano, alternando com os de Lisboa do Jardim da Estrela… «…Tudo está em tudo, e todo em todos, como deve saber-se – e o “Pavillon” entra na minha Guerra e Paz, na Mina, e por contos vários tem andado, lugar onde, de memória e imaginação». Estas memórias são uma belíssima fonte de descobertas e redescobertas. Vale bem lê-las.  

Guilherme d’Oliveira Martins

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