A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Primeiras Estórias», de João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira, 2005) é uma magnífica introdução à poderosa obra de um dos maiores escritores mundiais do século XX. Ao lermos, no regresso de Minas Gerais, estes 21 contos, que nos enchem de humanidade e de encantamento, descobrimos que a vida é um caleidoscópio feito do confronto de forças complementares e contraditórias, insondáveis e acessíveis, inesperadamente presentes.

A VIDA DOS LIVROS
de 17 a 23 de Setembro de 2012


«Primeiras Estórias», de João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira, 2005) é uma magnífica introdução à poderosa obra de um dos maiores escritores mundiais do século XX. Ao lermos, no regresso de Minas Gerais, estes 21 contos, que nos enchem de humanidade e de encantamento, descobrimos que a vida é um caleidoscópio feito do confronto de forças complementares e contraditórias, insondáveis e acessíveis, inesperadamente presentes.



João Guimarães Rosa e Aracy


UM MINEIRO INESQUECÍVEL
João Guimarães Rosa (1908-1967) é um mineiro de Cordisburgo, filho de um comerciante contador de estórias e caçador de onças, «seu Florduardo», e de D. Chiquinha. A partir dos nove anos foi viver com os avós em Belo Horizonte, tendo passado fugazmente por um internato em S. João del Rei. Os idiomas foram, desde cedo a sua paixão, depois da língua materna, do francês e do holandês, que lhe vieram da infância, aprendeu esperanto, espanhol, italiano e até um pouco de russo; lendo (na sua expressão): «sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado)»; entendendo «alguns dialetos alemães»; tendo estudado «a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polaco, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês»; e bisbilhotado «um pouco a respeito de outras». E confessava: «acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração». Com 16 anos matricula-se na Faculdade de Medicina do Estado de Minas Gerais, onde conhece Juscelino Kubitschek, dividindo-se, desde cedo, entre o fascínio da vida e a procura do sonho. Quando tomou posse como membro da Academia Brasileira de Letras, lembrou uma frase que dissera perante um colega morto muito jovem de febre-amarela: «as pessoas não morrem, ficam encantadas». Aliás, quando lemos, por exemplo, o belíssimo conto «A Menina de Lá» sente-se muito claramente essa ligação ao sonho e ao encantamento. Enquanto Nhinhinha vive, é como se flutuasse entre a vida e a ilusão, e quando morre, como que fica mais presente, «pelo milagre, o da filhinha glória, Santa Nhinhinha»… Com apenas vinte e um anos JGR estreia-se na escrita, sendo imediatamente premiado, ainda que confesse estar longe de um estilo próprio e original, que mais tarde buscará com sucesso. Em 1930, casa com Lígia Cabral Penna, de apenas 16 anos, tendo tido dessa breve ligação duas filhas, Vilma e Agnes. Começa a exercer a clínica em Itaguara, no município de Itaúna, onde se inicia na observação dos tipos sertanejos, sendo evidentes os traços de «seu Nequinha», um pobre homem dado a devaneios espíritas na personagem de Quelemém, o autêntico oráculo de «Grande Sertão – Veredas», intérprete fundamental de muitos estranhos acontecimentos do romance. No entanto, o médico sente-se impotente para curar as dores e sarar as feridas de um povo a que faltava o essencial. Vê-se, aliás, em grandes dificuldades quando é obrigado a assistir ao parto de sua própria filha Vilma. Afasta-se então o exercício livre da profissão, que foi fundamental para consolidar a capacidade para ver quem o rodeava como originalíssimo intérprete da sociedade de Minas. Durante a Revolução constitucionalista de 1932, é voluntário na Força Pública e no ano seguinte é oficial médico em Barbacena num batalhão de infantaria. Dedica-se no intervalo dos compromissos ao estudo dos idiomas e à recolha de informação exaustiva sobre os jagunços do Rio S. Francisco. Perante a admiração que a sua perspicácia e cultura causam junto dos seus colegas, é aconselhado a seguir a carreira diplomática, o que se liga com a sua personalidade mais orientada para a reflexão, para a ponderação de interesses e para o jogo do xadrez. E a verdade é que, concorrendo, obtém provimento para o Itamarati. Em 1936, a coletânea de poemas «Magma» obtém o prémio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Em 1937, publica a coletânea, que em 1946 será intitulada «Sagarana», o primeiro grande sucesso editorial do escritor. Aí está, em carne viva, a existência das fazendas, dos criadores de gado e os regionalismos, que não poderiam passar despercebidos a um homem apaixonado pelo linguajar dos vilarejos. Em 1938, é nomeado cônsul adjunto em Hamburgo. Na Europa conhece Aracy Moebius de Carvalho, que será a sua segunda mulher, e desempenhará papel fundamental no consulado. Nos prolegómenos da guerra e num lugar de perigo máximo, Guimarães Rosa consegue escapar à morte diversas vezes. Hoje, o conhecimento da história desse período permite saber a atuação de grande coragem e inteligência do casal na defesa e salvação de muitos judeus. E o certo é que Aracy é, sem dúvida, crucial nessa circunstância. Em preito de homenagem relativamente a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em 1985, através da mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome de ambos foi dado a um bosque que fica nas encostas que dão acesso a Jerusalém. D. Aracy revelaria, porém, o grande pudor que o escritor tinha em falar desse momento, apenas afirmando: «Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência».


ENTRE A DIPLOMACIA E A LITERATURA
Com a entrada do Brasil na guerra, Guimarães Rosa é preso em Baden-Baden, com diversos compatriotas, como Cícero Dias, sendo libertado por troca com diplomatas germânicos. Regressado ao Rio de Janeiro, aí está muito pouco tempo, sendo colocado como Secretário de Embaixada em Bogotá – experiência que lhe inspirará o conto «Páramo», sobre a solidão e o pânico. De novo no Brasil, empreende uma viagem mítica às suas origens familiares, fazendo depois parte da delegação brasileira à Conferência de Paz de 1945. Mantém intensa atividade diplomática e é nomeado Embaixador, mas sente-se atraído pelo misterioso «Sertão». Em 1951, realiza uma visita de estudo a Mato Grosso, tirando muitas notas sobre a fauna, a flora, os costumes, as crenças, a linguagem, anedotas, canções e tudo o mais. É o tempo de «Manuelzinho e Miguilim». Como facilmente nos apercebemos, o universo está no sertão e os homens são como que influenciados pelos astros… O regionalismo ganha, assim, uma feição universalista, e é isso mesmo que atrai críticos e escritores, mas também o público apreciador da muito boa literatura. Depois de «Sagarana» e de «Corpo de Baile», é o tempo da obra-prima «Grande Sertão: Veredas». A narrativa é surpreendente, na construção, nos temas, na linguagem, no caráter aforístico fragmentário, na interpretação do fantástico. A relação profunda, misteriosa e inesperada entre Riobaldo e Diadorim, por entre peripécias mil vai prendendo intensamente os leitores, que perante as dificuldades da linguagem vão descobrindo a intensidade das relações entre pessoas, das pessoas com a natureza, da natureza com os mistérios e os encantamentos. Alberto Costa e Silva afirma: «João Guimarães Rosa escreveu um romance, novelas e contos como se fizesse poesia. Sabendo que as palavras, além de significado ‘têm canto e plumagem’, e que as frases não devem ser gaiolas, mas, sim espaço, e, no espaço, voo. Não se quis discursivo, persuasivo, lógico. Preferiu ser expressivo, perscrutador e lúdico. Perseguiu uma prosa permanentemente emocionada, uma prosa que fosse uma sequência de versos de verdade – e não apenas pela marcação do ritmo e pela contagem dos pés -, versos construídos com a força dos substantivos e o matrimónio de palavras que, juntas, se desbanalizam, readquirem a pureza semântica e os timbres primitivos, ou se mostram com novos valores que nelas não sabíamos». Costa e Silva diz tudo. É difícil acrescentar mais alguma coisa. Só alguém sobredotado para a compreensão das palavras e dos sentimentos pode transmitir-nos essa força extraordinária. Quando sai, o livro causa perplexidade, mas ganha diversos prémios nacionais, entre os quais o de Machado de Assis. Os críticos do primeiro momento vêem-se ultrapassados pela força da originalidade e pela fidelidade da interpretação sertaneja. Por um momento, percebe-se o que o escritor quis dizer ao afirmar: «gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens». Quando, em 1962 publica «Primeiras Estórias» compreendemos bem esse desejo de ir às profundezas, e de aí cultivar a beleza. Entende-se a dor e o desamparo (como insiste Alberto Costa e Silva), com o «mel do maravilhoso que cobre o pão de cada dia»


Guilherme d’Oliveira Martins

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