A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Maria Beatriz Nizza da Silva escreveu «A Cultura Luso-Brasileira – Da Reforma da Universidade à independência do Brasil» (Estampa, 1999), que constitui uma análise muito interessante sobre a construção do Brasil moderno. A sua leitura é uma excelente introdução para um melhor conhecimento da cultura dos dois lados do Atlântico.


A VIDA DOS LIVROS
de 13 a 19 de agosto de 2012


Maria Beatriz Nizza da Silva escreveu «A Cultura Luso-Brasileira – Da Reforma da Universidade à independência do Brasil» (Estampa, 1999), que constitui uma análise muito interessante sobre a construção do Brasil moderno. A sua leitura é uma excelente introdução para um melhor conhecimento da cultura dos dois lados do Atlântico.




BRASIL LINDO E TRIGUEIRO
Em vésperas de regressarmos ao Brasil, no ciclo do Centro Nacional de Cultura, «Os Portugueses ao Encontro da Sua História», para invocar agora o Barroco brasileiro, ligado a tudo o mais que se projeta no futuro, culminando na cidade maravilhosa, urge lembrar João Gilberto – do «meu Brasil brasileiro». Hoje, porém, não falarei ainda do barroco, mas da necessidade de compreender a síntese da cultura luso-brasileira, recebida em minha casa pela palavra doce de minha avó e também sentida em Tiradentes, onde a «inconfidência» germinou (1788), mas onde a alma dos dois lados do Atlântico naturalmente se encontra, com Tomás António Gonzaga («Graças Marília bela, / Graças à minha Estrela») ou com o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, mas sobretudo na riqueza inesgotável desse território mágico, que permite o idioma português ser o mais falado do hemisfério sul. Não se trata de invocar o passado, mas de partir das raízes comuns e próprias para a compreensão de uma convergência, plena de diferenças. Quem tiver a tentação de salientar apenas o que encontra perderá a força das complementaridades de uma história que só tornou possível a grandeza do Brasil, graças a uma capacidade única de conjugar diferenças abissais. Veja-se a ambiguidade da expressão «homem cordial» em Ribeiro do Couto ou em Sérgio Buarque de Holanda. O coração tem aí as contradições próprias do mel e das lágrimas (de que fala Eduardo Lourenço), mas também dos conflitos, das incompreensões, da ironia e do ciúme. Vieira, no seu viver brasileiro, inventou as saudades do futuro para focar a esperança. Não por acaso, num texto quase esquecido de José Bonifácio de Andrada e Silva, nas vésperas da independência brasileira (e para prepará-la), exprimindo a D. Pedro ideias sobre a organização política do Brasil, quer como Reino Unido a Portugal, quer como Estado independente, dizia: «Pois que a Constituição tem um corpo para querer ou legislar, o outro para obrar e executar as leis, ou vontade do primeiro, é preciso que haja um terceiro corpo que deve decidir as questões ou disputas mútuas dos primeiros por um modo pacífico e legal. Este será o corpo conservador». Sabemos que D. Pedro adotaria a ideia na Carta Constitucional de 1826, como poder moderador, o importante não é invocá-lo aqui, mas assinalar que José Bonifácio, luso-brasileiro das origens, entendeu muito bem a dialética e a síntese, numa realidade heterogénea e imprevisível, que obrigaria a que um espírito de convergência fosse assumido com especial clareza pelas instituições. Esse «corpo conservador» nada teria de imóvel ou avesso à mudança, mas, ao contrário, deveria compreender a capacidade transformadora de uma realidade rica e multímoda.


ENCRUZILHADA DE INFLUÊNCIAS
Ao lermos Maria Beatriz Nizza da Silva, aí se sente, na encruzilhada da independência, a construção da «nação», conceito de tipo novo, com desígnios incertos e imprevisíveis, para um futuro realizado a partir do aprofundamento das raízes comuns e próprias de cada um, numa confluência singularíssima entre elementos centrífugos e centrípetos, que impedem a uniformização ou a simplificação, favorecendo o enriquecimento mútuo. Com grande sabedoria, D. Pedro jurou, de um modo muito especial, perante os constituintes brasileiros (compreendendo-os e legitimando-se) o que poderia vir a ser a futura lei fundamental: «Juro defender a Constituição que está a ser feita, se for digna do Brasil e de mim». Temos assim um misto de cuidado e de vontade própria de salvaguardar uma legitimidade não redutível a uma vertente simples. E por isso mesmo se demarcou das experiências constitucionais conhecidas, uma vez «que a experiência nos tem mostrado que são totalmente teóricas e metafísicas e por isso inexequíveis». Este realismo permite-nos compreender que a relação com o Brasil obriga a dar passos serenos, seguros e compreensivos – percebendo-se que a síntese luso-brasileira é única, insuscetíveis de misturas abusivas ou de esquecimentos sobre os complexos caminhos percorridos. Hoje, sabemos, por exemplo, que os bandeirantes e a sua notabilíssima ação (há anos invocada pelo nosso grupo, nas margens do rio Ipiranga) têm de ser vistos como os construtores de uma nação de tipo novo, criada por uma paradoxal síntese com o espírito das reduções jesuíticas do sul. No fundo, as várias histórias convergem num poderoso caudal comum, uma riquíssima convergência de elementos que se completam pelas diferenças.


SÍNTESE DE TENDÊNCIAS
Na fecunda relação luso-brasileira passa-se como António Candido diz dever ocorrer no estudo da literatura (no seu magnífico «Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos», da Academia Brasileira de Letras, 2012). Trata-se de encarar a história «como síntese de tendências universalistas e particularistas. Embora elas não ocorram isoladas, mas se combinem de modo vário a cada passo desde as primeiras manifestações, aquelas que parecem dominar nas conceções neoclássicas, estas nas românticas…». Na obra de Maria Beatriz Nizza da Silva, fica claramente demonstrado que as elites cultas da metrópole e do Brasil, sobretudo depois da reforma pombalina da Universidade de Coimbra não só circulavam de um para o outro lado do Atlântico, como praticamente faziam as mesmas leituras e recebiam a mesma formação. Não por acaso, Francisco de Lemos Pereira Coutinho, o bispo reformador da Universidade de Coimbra, era natural do Rio de Janeiro, enquanto José Clemente Pereira, um dos próximos apoiantes de D. Pedro na independência era natural da Guarda. O prestígio que a Universidade de Coimbra ganhou é indiscutível, associando-se ao da Academia das Ciências de Lisboa, com uma presença crescente de temas brasileiros nas Memórias, culminando na ida da Corte para o Brasil, devendo ainda referir-se o papel dos viajantes e naturalistas, a conceção dos jardins botânicos ou a formação militar. O intercâmbio na engenharia, no urbanismo, na saúde pública, as mutações urbanas depois da instalação da Corte no Rio são temas do maior interesse pelas repercussões que produziram. A cada passo, encontramos a crescente presença e influência dos estudantes vindos do Brasil com as suas características próprias, como a religiosidade e a ausência dela, os costumes, o choque entre pedreiros-livres e inquisição – havendo ainda a circulação dos livros, as bibliotecas científicas, as publicações, as gazetas e os periódicos. As conceções de D. Rodrigo de Sousa Coutinho sobre uma nova administração colonial (1796-1801) são fundamentais – «percebemos na documentação uma crença absoluta no papel da razão, no valor da informação, na importância da observação e da experiência». Era indispensável estabelecer a «reciprocidade entre a metrópole manufatureira e a colónia agricultosa» – regulando pela ciência as minas e os bosques e desenvolvendo as navegações. E assim a cultura científica ligava-se à cultura política, naturalmente.


Guilherme d’Oliveira Martins

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