A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

A memória de um grande poeta como Alberto Lacerda (1928-2007), autor de «Elegias de Londres» (1987) e de «Horizonte» (2001), foi lembrada durante quinze dias em Lisboa, não como celebração retrospetiva, mas como um encontro de escritores contemporâneos dos dois lados do Atlântico, em nome da criatividade e do «desassossego» de Bernardo Soares e Fernando Pessoa. «Disquiet» foi a bandeira, e foi uma oportunidade única de tornar a cultura diálogo vivo.

A VIDA DOS LIVROS
de 30 de julho a 5 de agosto de 2012


A memória de um grande poeta como Alberto Lacerda (1928-2007), autor de «Elegias de Londres» (1987) e de «Horizonte» (2001), foi lembrada durante quinze dias em Lisboa, não como celebração retrospetiva, mas como um encontro de escritores contemporâneos dos dois lados do Atlântico, em nome da criatividade e do «desassossego» de Bernardo Soares e Fernando Pessoa. «Disquiet» foi a bandeira, e foi uma oportunidade única de tornar a cultura diálogo vivo.



QUE DIPLOMACIA CULTURAL?
Jacinto Lucas Pires dizia-me, há dias, no baixar do pano desta Universidade de verão: que a diplomacia cultural não se faz com gestos formais e grandiloquentes, mas com conhecimento, hospitalidade, convívio, curiosidade, criatividade e descoberta. O cenário era a Mãe-de-Água, nas Amoreiras, numa sexta-feira, 13, em que o som borbulhante da água se associava a uma corrente intensa com o seu quê de mágico. Refiro o «Disquiet», o programa internacional literário, que este ano se realiza pela segunda vez em Lisboa. Foi uma Universidade de verão para sessenta escritores norte-americanos, que decorreu na primeira quinzena de julho, sob a iniciativa da Dzanc Books, do Michigan, nos EUA, com o Centro Nacional de Cultura, partindo do princípio de que a imersão numa cultura estrangeira num ambiente diferente do habitual e de que a quebra de rotina subsequente tendem a estimular a criatividade, abrindo novas perspetivas e novos ângulos de interpretação do mundo, resultando um evidente enriquecimento para todos os que nele participam. Como o próprio nome indica «disquiet» é uma invocação do Livro do Desassossego (LD) de Bernardo Soares. E que melhor oportunidade poderemos encontrar senão a extraordinária recordação dessa inesgotável reflexão, que levou Harold Bloom a dizer que Fernando Pessoa (o rei da nossa Baviera) é um «legado da língua portuguesa ao mundo»? E somos levados a seguir os passos do poeta: «Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. (…) Vivo uma era interior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas» (LD, fragmento 3). Pela cidade, invadindo o Chiado e não só, esses sessenta escritores do outro lado do Atlântico, com ou sem raízes portugueses, mas todos apaixonados pelo nosso sol e pelo nosso sul, foram procurando descobrir, mais do que Pessoa, a poesia, as ideias – a alma da criatividade.


DEBATES COMO ENCONTROS
Num dos dias, no Café no Chiado, Onésimo Teotónio de Almeida contou as suas pequenas histórias, mas sobretudo comoveu-se ao encontrar alunas suas de há bastantes anos, verificando que deixara nelas a pequena semente da cultura portuguesa, como mundo de palavras e pessoas hospitaleiras, ávidas de descobrirem e sobretudo de serem descobertas. Não disse ele da «açorianidade»: se os escritores procurarem, mesmo longe, como Nemésio, explorar a compreensão humana desse mundo e o fizerem com o génio artístico de Vitorino Nemésio, enriquecem-se todos: a literatura açoriana, a literatura portuguesa, os açorianos, os portugueses, os leitores e eu»? E é isto mesmo que sentimos quando nos abrimos ao confronto, às incompreensões e à reações mais diversas sobre o que somos. Jeff Parker perguntava-se por que motivo me interessava pela identidade. E compreendeu bem que o que estava em causa era a capacidade de compreender o dar e o receber, o dom e a capacidade de não nos levarmos demasiado a sério, de modo que as diferenças se relacionem livremente.


«DO LADO DE CÁ DO MAR»
Na conversa com Jacinto Lucas Pires, tínhamos acabado de ouvir Philip Graham ter lido passagens do seu «The Moon come to Earth», traduzido em português como «Do lado de cá do Mar» (da Presença). Jacinto ajudara a vencer a exuberância da água em movimento (que escondia os sons), lendo uma página deliciosa de Philip. Alguém se surpreendia deveras com esta capacidade que nós, portugueses, temos de comer sofregamente sílabas, tornando as palavras incompreensíveis, correndo o sério risco de sofrermos uma indigestão de sílabas. E com um humor fino e certeiro, o escritor rende-se a Portugal e às suas qualidades e defeitos, mas sobretudo à sua fantástica qualidade de saber integrar as múltiplas diferenças que recebe. Jeff Parker compreendeu bem que este diálogo entre identidade e diferença é crucial, e promete voltar ao tema, sem formalismos nem preconceitos. O sucesso do «Disquiet» deve-se à generosidade e a uma ligação entre afetos e paixão pela leitura. Sem Jeff Parker e Scott Laughlin, sem a omnipresença da formiguinha incansável que é Teresa Tamen e da sua equipa ubíqua do Centro, com o apoio da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento – merecendo especial referência o entusiasmo presencial de Mário Mesquita e Miguel Vaz – nada teria sido possível. E entre os portugueses anoto: Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, Patrícia Reis, Alberto Vaz da Silva, Patrícia Reis, Patrícia Portela, Rui Zink, Richard Zenith e Guilhermina Gomes – prometendo-se muito para o próximo ano.
Mas há um benemérito especial, cuja memória preenche todo o espaço desta iniciativa – o saudoso poeta Alberto Lacerda (1928-2007), jovem secretário da revista «Távola Redonda», (1950-54) onde encontrou Ruy Cinatti, David Mourão-Ferreira, António Manuel Couto Viana, Luís Macedo e Fernanda Botelho. A verdade é que era um poeta que tinha uma verdadeira paixão pela língua (como escreveu lapidarmente Eugénio Lisboa). Quando foi para Inglaterra encontrou Edith Sitwell, que reconheceu o seu talento e apresentou-o ao seu círculo (Arthur Waley, T. S. Eliot e René Char). Não é possível fazer a história da comunidade artística portuguesa em Londres esquecendo Lacerda. Na América encontraria Anne Sexton, Robert Duncan, Rossanana Warren e John Ashbery – mas poderemos ainda citar Octávio Paz, Jhumpa Lahiri (Pulitzer, 2000) e Ian Mc Ewan, que o encontrou em estado de coma. O talentoso poeta português tornou-se, assim, uma referência que agora não desejamos ver esquecida (como se afirmou muito bem no British Council). Lembramo-nos bem de uma fotografia de culto, tirada em Chelsea, em 1964, com Alberto Lacerda, Luís Amorim de Sousa (uma presença fundamental neste desassossego inesgotável) e Mário Cesariny. E se falo disso é para assinalar a simbologia, que reúne três referências de um universalismo linguístico de diversas leituras. A partir da experiência de Alberto Lacerda e da memória da sua vida, esta Universidade de verão deixará sementes duradouras e modernas. Há um ano contou com a presença de António Lobo Antunes. Sentimos que há a força de uma vocação ambiciosa (em ligação com o «Lisbon Consortium», animado pela Professora Isabel Capeloa Gil), internacional, universalista, dialogante, como a necessária abertura de horizontes novos. Que é a cultura portuguesa senão um lugar de muitas diferenças?  


Guilherme d’Oliveira Martins

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