A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«As Viagens na Minha Terra» de Almeida Garrett (1846) e «A Morgadinha dos Canaviais» de Júlio Dinis (1868) são duas obras-primas da literatura portuguesa que retratam muito bem a evolução da sociedade na primeira metade do século XIX. À distância de vinte anos distingue-se a guerra civil e a acalmação, um povo dividido de armas na mão, que Carlos lastima intensamente, e um conjunto de influentes políticos, empenhados em suscitar melhoramentos, como o Conselheiro Manuel Bernardo, Henrique Souselas e Joãozinho das Perdizes.

A VIDA DOS LIVROS
de 2 a 8 de Julho de 2012



«As Viagens na Minha Terra» de Almeida Garrett (1846) e «A Morgadinha dos Canaviais» de Júlio Dinis (1868) são duas obras-primas da literatura portuguesa que retratam muito bem a evolução da sociedade na primeira metade do século XIX. À distância de vinte anos distingue-se a guerra civil e a acalmação, um povo dividido de armas na mão, que Carlos lastima intensamente, e um conjunto de influentes políticos, empenhados em suscitar melhoramentos, como o Conselheiro Manuel Bernardo, Henrique Souselas e Joãozinho das Perdizes.


 


ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE
O século XX português é marcado culturalmente por uma tensão complexa em que a herança do século XIX se alia à aceleração histórica da última centúria. O liberalismo, que nasceu entre nós por um impulso não exclusivamente europeu, confrontou-se com a tentação autocrática. Os ventos da Revolução francesa chegaram-nos sob o signo contraditório das invasões e da guerra peninsular. Por um lado, a aliança britânica e a saída da corte para o Brasil permitiram evitar a perda da independência; por outro, a subalternização portuguesa tornou-se notória, criando um caldo de cultura favorável ao fortalecimento de uma corrente crítica. Deste modo, a boa razão pombalina, a insuportável irrelevância da elite económica da metrópole, a evolução espanhola, o francesismo, a exigência de um constitucionalismo liberal – tudo se associou no sentido de uma «regeneração» patriótica que foi levantada como bandeira no Porto em 1820, na sequência da restauração da Constituição espanhola de 1812. Se é verdade que a velha Albion deixava o Portugal europeu na penumbra, havia a ideia no Rio de que a parte americana do Reino intercontinental garantiria para este a independência e o poder. No entanto, o berço da monarquia ficaria no «humilde, injurioso e incómodo estado de colónia» (na expressão de Rocha Loureiro). Manuel Fernandes Tomás, Silva Carvalho e Ferreira Borges lançaram, por isso, o movimento que culminaria na revolução de 1820. No entanto, a união com o Brasil era posta em causa. O poder real ter-se-ia de dividir, uma vez que seria impossível acudir aos diversos interesses em presença. A Constituição de 1822 consagraria, porém, um sistema com fragilidades evidentes – a ausência do direito de sanção real, a não previsão de uma Câmara de Pares, além de não terem sido aceites as principais reivindicações dos deputados brasileiros. Afinal, o regresso às pressas do rei fora insuficiente para pressionar um compromisso. De qualquer modo, abrira-se um novo tempo político que careceria de um longo período de ajustamento, que duraria cerca de trinta anos, com pelo menos dois períodos relativamente longos de guerra civil. Absolutismo versus constitucionalismo, cartismo versus poder constituinte, o país urbano contradizia o país rural, a aristocracia velha desconfiava dos novos letrados e comerciantes. Em pano de fundo, as revoluções ibéricas eram marcadas pelo intervencionismo militar – golpes e contragolpes, pronunciamentos… Em 1822 o inevitável ocorre – o Brasil declara-se independente pela voz do Príncipe D. Pedro. Em 1823, a Constituição é suspensa, enquanto grassa vivo descontentamento: o comércio externo declina, os recursos públicos definham, a separação do Brasil desorganiza a economia. Os anos subsequentes levarão à influência crescente dos realistas.


UMA HISTÓRIA CHEIA DE INTERROGAÇÕES
D. João VI morre em condições não esclarecidas, D. Pedro outorga a Carta Constitucional, o que não impede que D. Miguel restaure a ordem antiga. José Acúrsio das Neves, Frei Fortunato de S. Boaventura e José Agostinho de Macedo tornam-se os porta-vozes da nova ideologia oficial. Para Garrett, a Carta «não foi outra coisa senão um pacto de concórdia celebrado pelo soberano entre os dois partidos». Mas os realistas não o aceitaram. A história subsequente é conhecida – D. Miguel toma conta da situação, sem possuir, no entanto, força suficiente (designadamente militar) para poder fazer compromissos. D. Pedro vem para a Europa, obtém um pequeno apoio financeiro do Brasil, uma base territorial na ilha Terceira nos Açores e, depois do desembarque dito do Mindelo, condições para dominar progressivamente o território do reino, a partir do Porto, com larga margem de manobra no mar, o que permitirá ao futuro Duque da Terceira ir do Algarve até Lisboa, onde chegaria a 24 de Julho de 1833 – com Palmela a dizer que se fartou de encontrar casacas viradas. Entretanto, o contexto internacional mudara, tornando possível a Quadrupla Aliança, assinada em Londres (22.3.34), com Inglaterra, França e Espanha, que abriria caminho à Convenção de Évora Monte. Garrett e Herculano tornaram-se os símbolos culturais deste tempo, ao lado de Mouzinho da Silveira. E «As Viagens na Minha Terra» representam a leitura crítica de um momento em que as ilusões idealistas entravam em choque com a realidade nua e crua: «Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado a fazer gala da sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito». 1836, 1842, 1846-47, 1851 são datas que representam os avanços e os recuos do compromisso. A Revolução de Setembro pretendeu superar as fragilidades da Constituição de 22 e da Carta de 26, o golpe de Costa Cabral, a Maria da Fonte e a Patuleia representaram a perplexidade do país real. E Herculano tinha razão quando dizia que a vitória de 34 provocou a «única revolução social por que o nosso país tem passado desde o século XV».


UM QUADRO PACIFICADOR
Os decretos de Mouzinho, escritos por Garrett, puseram fim à ordem antiga, mas a adaptação dos povos foi lenta. Júlio Dinis retrata magistralmente em «A Morgadinha dos Canaviais» essa acomodação. E Camilo descreve as feridas que se abrem e que saram melhor ou pior. Nos anos sessenta, os jovens de Coimbra, capitaneados por Antero de Quental, demonstraram que o país queria viver ao ritmo da Europa, através da consciência civil e não da soldadesca. Só a acalmação regeneradora permitiu um tal movimento profundo e pacífico. E quando em 1871 as Conferências Democráticas se interrogaram sobre as causas da decadência dos povos peninsulares ou sobre os novos caminhos da literatura fizeram-no para recusar a condenação ao atraso, à distância e à mediocridade. A proibição de Ávila e Bolama foi um ato excêntrico e anómalo que deu palco à novíssima geração e deixou claro que o velho Herculano, cidadão livre, estava ao lado dos inconformistas, ainda que não concordasse com o que diziam. Mais do que uma escola literária, o que estava em causa era uma atitude, a de propor a reforma de Portugal, no sentido do que seria uma «Vida Nova», na política, na economia e na sociedade, com recusa de fatalismos, providencialismos e indiferenças. E quando Antero de Quental assumiu a presidência da Liga Patriótica do Norte, reagindo contra a humilhação do ultimatum inglês, num sobressalto cívico por todos sentido, o seu gesto projetou-se para além da circunstância. Também o 31 de Janeiro se tornaria, mais do que o insucesso militar ou que a inconsistência tática, uma referência. Sampaio Bruno e Basílio Teles tornaram-se epicentros de uma inesperada e profunda renovação cultural, que viria, anos passados, a ser representada por «A Águia» e pela Renascença Portuguesa, marcando o século XX, muito para lá da Primeira República. E em poucos momentos como esse foi possível encontrar uma tão influente placa giratória intelectual – envolvendo Pascoaes, Leonardo, Cortesão e Fernando Pessoa…  


Guilherme d’Oliveira Martins

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