A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Ao criar o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva do jornalismo cultural, no âmbito do património, a Europa Nostra reconhece a importância fundamental da comunicação social na defesa, na crítica e na salvaguarda da memória histórica e da criação cultural.

A VIDA DOS LIVROS
de 18 a 24 de Junho de 2012



Ao criar o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva do jornalismo cultural, no âmbito do património, a Europa Nostra reconhece a importância fundamental da comunicação social na defesa, na crítica e na salvaguarda da memória histórica e da criação cultural. Como afirma Eduardo Lourenço em «A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia» (Gradiva, 1999): «A cultura – mesmo a mais excitante – não é um fim em si mesma. Precisamos de um demónio crítico e irónico para nos ajudar a viver com menos delírio e euforia (…) a nossa cultura, neste momento tão enigmaticamente suspenso entre o esplendor visível da nossa condição de deuses virtuais e impor uma ordem à sua vontade de se apropriar da vida subtraindo-a ao que Camões chamava “o poder das trevas”».


 
Lusa


DEFESA DA CIDADANIA CULTURAL
Plácido Domingo disse no Mosteiro dos Jerónimos e no Convento de Mafra sobre a importância da cultura e da proteção e salvaguarda do património cultural. Para o presidente da «Europa Nostra», perante a crise, temos de assumir a emergência de pôr a defesa da cultura, da criação, do património e da memória, como primeiras prioridades da sociedade contemporânea. Por isso, o Congresso Europeu do Património da «Europa Nostra» – Lisboa, 2012, considerou que precisamos de uma estratégia coordenada a partir da complementaridade entre iniciativas da sociedade civil, dos Estados e das organizações internacionais e supranacionais, que ponha a cultura no centro da sociedade. E Vasco Graça Moura salientou-o expressamente, também em Mafra, ligando cidadania ativa e proteção do património. Não está, porém, em causa uma lógica retrospetiva, mas sim o entendimento complexo e dinâmico da criação como elemento de coesão e de diferença. A cultura não é um luxo! A cultura não pode ser vista como algo de supérfluo. A cultura é a qualidade, a reflexão e o conhecimento de nós mesmos. Ao falarmos das novas gerações de direitos fundamentais; ao pormos a tónica no desenvolvimento humano e na eminente dignidade das pessoas; ao procurarmos superar uma visão de curto prazo centrada na ilusão financeira e na especulação das economias de casino; ao ligarmos património e criação contemporânea; ao vermos o património cultural como encruzilhada de referências materiais e imateriais, com ligação à paisagem, à natureza, ao meio ambiente e ao equilíbrio ecológico, bem como às artes (a música fantástica dos seis órgãos de Mafra, restaurados e premiados) e às línguas; ao articularmos memória, credibilidade e confiança; ao pormos em comum o património da humanidade e o património partilhado, como fatores de paz, de pluralismo e de respeito mútuo («a Acrópole de Atenas não é grega, é de toda a humanidade», disse Plácido Domingo); ao considerarmos a defesa do património em risco ou ameaçado como tarefa urgente e de todos; ao entendermos a educação, a ciência e as artes como eixos essenciais de progresso; e ao apostarmos na exigência, no rigor e na grande qualidade como elementos criadores de valor – estaremos a abrir caminhos novos no sentido de um humanismo universalista.


UMA EUROPA CRIATIVA
A comissária europeia Androulla Vassiliou fez questão de afirmar que «“uma Europa criativa” coloca a cultura no coração das políticas da União Europeia». Não se pense, porém, que se trata de uma afirmação de circunstância. Tem de ser mais do que isso. Os últimos acontecimentos mundiais, a incerteza económica, a falta de coragem política e de visão de futuro, a ausência de uma audaciosa coordenação de esforços, de vontades e de energias têm de dar lugar à valorização do triângulo educação, ciência e cultura, bem como à criação de valor orientada para a qualidade, elemento crucial que não pode nem deve ser esquecido. Lembramo-nos bem do que Italo Calvino propôs para o novo milénio: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Ora, ao falarmos de património cultural e de cultura, numa perspetiva aberta e orientada para diante, temos de entender que a nossa relação positiva com esses valores permitirá que o património não seja puramente material, que a herança seja permanentemente enriquecida pela reciprocidade e que a memória seja um elemento de coesão, de confiança e de experiência e não motivo de divisão e de ressentimento. Helena Vaz da Silva, que foi homenageada em Lisboa, e que passará a inspirar o prémio europeu de jornalismo cultural pelo património afirmou: «a cultura é um instrumento de felicidade». De facto, como poderemos voltar a valorizar os ideais e os valores, se não partirmos da felicidade e do humanismo para o respeito mútuo contra a indiferença?


IDENTIDADES E TOLERÂNCIA
Hoje, presenciamos a invocação das identidades como motivo de fechamento e até de intolerância. O medo atrai o chauvinismo. A exclusão induz a fragmentação. Trata-se de não compreender que, sendo a conflitualidade algo de natural nas sociedades humanas, a superioridade ética tem de corresponder ao equilíbrio democrático entre o que é próprio e o que é recebido de fora, em ligação com a capacidade inovadora da criação do novo e do diferente. A decadência é a sobrevalorização do pretérito sem consciência de que a inteligência é a melhor adaptação às novas circunstâncias. E se sabemos que a decadência é sempre o resultado de complexas e contraditórias influências (como se viu no «século de ouro» na Espanha do século XVII ou no «Apocalipse Alegre» de Viena no tempo de Robert Musil) não podemos esquecer que são a capacidade regeneradora e a ideia de metamorfose (de que tem falado Edgar Morin) que nos permitem a saída dos bloqueamentos e das pulsões supostamente purificadoras. A atual crise europeia é ditada pela incapacidade de compreender que só a coordenação genuína permitirá evitar o fracasso. Estamos como no dilema dos prisioneiros – não podemos aspirar ao cenário ideal, mas impõe-se a experiência inteligente para evitar o pior. As tentações fragmentárias, isolacionistas e protecionistas originam prejuízo para todos. A Europa corre o risco da irrelevância, com cada um a puxar para seu lado. A periferia e a mediocridade são características indesejáveis. Num país antigo, Portugal e os portugueses bem sabem do que estamos a falar, ainda que nem sempre tenham sabido tirar as lições certas. Fala-se muito de exportar. Quem o diz tem razão, mas não toda. O certo é que precisamos de criatividade. A globalização precisa de complementaridades e de interdependências. Nunca há fluxos estáveis que não sejam biunívocos. A velha estratégia do transporte, que caracterizou a nossa economia durante séculos não suficiente. Antero de Quental, os seus amigos e António Sérgio disseram-no. De facto, precisamos de fixar riqueza, de criar uma procura estável, de ligar mobilidade e permanência. É por isso mesmo que o debate cultural, sobre a qualidade e a criação, está no centro das nossas preocupações históricas. Durante a visita a Lisboa, na Embaixada de Espanha, o Príncipe das Astúrias fez questão de citar (e muito bem) Eduardo Lourenço – sobre o sonho de um futuro partilhado, neste «magma obscuro de heranças e ritos milenários». Precisamos, no fundo, diz o ensaísta, daquela «espécie de vontade de existir, de ter um destino, uma missão singular por ser então a do Ocidente inteiro, mas também o conhecimento do mundo que já tivemos quando, quase sós, fomos uma imagem antecipada de todos os futuros. Anacronismo? Se se quiser, mas futurante» («Nau de Ícaro», cit., p.71).


Guilherme d’Oliveira Martins

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