A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Dalila Pereira da Costa (1918-2012) faleceu no Porto há poucos dias. Foi uma importante ensaísta com ampla obra publicada sobre a cultura portuguesa, avultando «Místicos Portugueses do século XVI» (Lello & Irmão, 1986), além de muitas outras, como «O Esoterismo de Fernando Pessoa» (1971), «Os Jardins da Alvorada (1981) e «Gil Vicente e Sua Época» (1989). Dela disse o pintor Lima de Freitas: «É desde há muito uma figura ímpar na nossa cultura, inovadora e luminosa, que não cessa, ao longo dos anos, de nos surpreender como pensadora e ensaísta não só pela agudíssima e por vezes relampejante penetração intuitiva, escorada numa sólida e profunda cultura de um tipo raríssimo no nosso país». E António Quadros afirmou: «na sua personalidade se encontram harmoniosamente, tanto a inteligência hermenêutica apoiada na mais sólida cultura, como a predisposição e «saber de experiências feito» de quem é, ela própria, uma espiritual, uma mística».

A VIDA DOS LIVROS
de 5 a 11 de Março de 2012



Dalila Pereira da Costa (1918-2012) faleceu no Porto há poucos dias. Foi uma importante ensaísta com ampla obra publicada sobre a cultura portuguesa, avultando «Místicos Portugueses do século XVI» (Lello & Irmão, 1986), além de muitas outras, como «O Esoterismo de Fernando Pessoa» (1971), «Os Jardins da Alvorada (1981) e «Gil Vicente e Sua Época» (1989). Dela disse o pintor Lima de Freitas: «É desde há muito uma figura ímpar na nossa cultura, inovadora e luminosa, que não cessa, ao longo dos anos, de nos surpreender como pensadora e ensaísta não só pela agudíssima e por vezes relampejante penetração intuitiva, escorada numa sólida e profunda cultura de um tipo raríssimo no nosso país». E António Quadros afirmou: «na sua personalidade se encontram harmoniosamente, tanto a inteligência hermenêutica apoiada na mais sólida cultura, como a predisposição e «saber de experiências feito» de quem é, ela própria, uma espiritual, uma mística».



A MÍSTICA PORTUGUESA
A propósito dos místicos portugueses e estabelecendo um paralelo com os descobrimentos, afirmou Dalila Pereira da Costa: «Julgamos não ser arbitrário estabelecer um paralelo entre esse ato passado dos portugueses, como conhecimento da terra, e toda a sua contribuição para a nova ciência da Idade Moderna, então iniciada, e este outro agora anunciado nestes tempos atuais, o conhecimento do Espírito, como abrindo novo ciclo de ser e conhecer à humanidade». Numa obra realizada a partir de uma análise circunstanciada do pensamento dos nossos mais significativos místicos de quinhentos, a autora procura apresentar-nos os sinais de uma espiritualidade ibérica, na sua perspetiva portuguesa. Parte assim, de uma análise das idiossincrasias culturais do ocidente peninsular, assentando fundamentalmente em duas místicas algo diferenciadas, mas complementares: de Frei Tomé de Jesus (1529-1582) e de Frei Agostinho da Cruz (1540-1618). Frei Tomé de Jesus será seguido por D. Hilarião Brandão (?-1585), por Frei Sebastião Toscano (1515-1583) e pelo poeta místico D. Manuel de Portugal (?-1606). E a ensaísta aponta a especial força do primeiro: «É seu anseio ou pedido ardente, o que se expressa através dessas páginas de fogo dos “Trabalhos de Jesus”; louvor e cântico dessa união transformante, deificante e que aqui só se pode manifestar e transmitir aos homens, unicamente por interjeições, que por elas marcarão assim a fronteira, na humana fraqueza, desse termo de inultrapassável formulação entre a palavra do homem e a palavra de Deus, como silêncio: seu indizível». Nota-se, assim, com evidência a herança de S. João: «Nunca a identidade explícita de Deus, Verbo e Amor foi mais potentosamente dita na sua língua».


O CATIVEIRO DE MARROCOS
Estamos diante de uma mística voluntarista e afetiva – marcada e intensificada pela experiência pessoal, em especial nos momentos finais do tremendo cativeiro de Marrocos. A vida contemplativa, como união perfeita com Deus, articula o agir e o partilhar com os irmãos de uma vivência de realização do amor. E o biógrafo de Frei Tomé, Frei Aleixo de Menezes dirá: «Era muito dado à oração e lição dos Santos Padres em tanto grau, que sendo mestre de noviços jamais se encostava antes das matinas, gastando aquele tempo nestas duas cousas, e quando voltava delas, se encostava e então dormia um pouco». Pelo recolhimento e meditação no Convento de Penafirme procurava, em solidão, entre o céu, o mar e a terra, encontrar-se na profundidade dos seus exercícios místicos. Dirá ainda Frei Aleixo: «Deu grande exemplo de caridade com os necessitados e enfermos, e ajuntava muitas esmolas para repartir com os parentes pobres dos religiosos; por que eles não se distraíssem com esta ocupação». Frei Tomé de Jesus acompanhou D. Sebastião a Alcácer-Quibir, por desejo expresso do monarca e aí teve ação importante nos momentos trágicos da derrota. Foi então tornado cativo, sofrendo maus tratos e perigando a sua vida. Esteve preso durante quatro anos e recusou a intervenção de familiares para o libertarem – respondendo preferir «morrer cativo pelo bem das almas de seus naturais e companheiros, que viver em liberdade com perda de tão grandes ganâncias». Deste modo encontrou a morte, estando o seu fim ligado ao destino da pátria. A glorificação da Paixão de Jesus Cristo teve em Frei Tomé de Jesus o significado de sacrifício individual e coletivo, pessoal e nacional, como dupla identificação a Cristo de um português e de uma nação.


O FRADE DA ARRÁBIDA
«Se a união como celebração gloriosa entre terra e céu se fará na mística de Frei Agostinho da Cruz marcadamente pela Assunção da Virgem, e em Frei Tomé de Jesus pela paixão de Deus-Homem, ambas as celebrações possuirão um sentido e dimensão cósmicas: tal será a língua sagrada de dois místicos do século XVI, simultaneamente realizada numa nação sofrendo então a forma derradeira do Mal no mundo terreno: como perda de liberdade». Com esta afirmação, Dalila Pereira da Costa fala-nos de uma abolição do tempo profano e da entrada na eternidade, vida e salvação, o que é particularmente evidente quer nos «Trabalhos de Jesus» quer nos «Hinos à Senhora da Memória» do arrábido. De facto, os exercícios realizam-se por força do amor cristão e da sua sublimação mística. É a união com Deus que é procurada – «Ó amor divino, possui-me todo e de ti possuído arroja-me por onde quiseres, alaga-me em quantos mares quiseres; espedaça-me com quantos tormentos quiseres; porque em ti e comigo não podereis ser perdido» (Trabalhos). Já Frei Agostinho da Cruz, presença de homem e terra, saudosos do céu, vindo da Ribeira do Lima, franciscano da Arrábida, entende a comunhão com a natureza o fundamento da experiência mística. «No meio desta Serra onde se cria / Aquela saudade d’alma pura / Que no duro penedo acha brandura / Ardente fogo dentro n’água fria». Aqui se ligam finito e infinito na demanda do absoluto, através do exemplo da Virgem. A Natureza passa a ser divinizada – através da experiência do poeta. «Todo o convento é construído sob o esquema do labirinto, para uma iniciação ou santidade: ambos caminhos visando a um mesmo fim». E lá está o símbolo do Conventinho: «santo e homem, braços abertos em cruz, um pano vendando os olhos, um aloquete fechando a boca, uma vela na mão direita, na esquerda as penitências; e pousa-lhe aos pés a antiga serpente, que se enrola no globo azul do mundo». Ao homem velho antepõe-se o homem novo, à ideia de Deus distante, o amor próximo feito de fé e de vontade.


GIL VICENTE, INESPERADO
Inesperadamente para alguns, encontramos Gil Vicente, em cuja obra perpassa «esse mesmo ideal franciscano de união com a natureza, toda ela descrita num realismo estreme, intima e amorosamente e de experiência de união vivida e cantada em termos de exultação como raro atingido em cultura portuguesa». Leiam-se os autos da Barca do Inferno, de Mofina Mendes, da Lusitânia e, especialmente o da Alma: «Assim foi causa conveniente que nesta caminhante vida, houvesse hua estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão pera a eternal morada de Deus». Aí estão os ingredientes místicos, usados com especial talento. Gil Vicente faz a ligação entre as raízes medievais e a modernidade, pelo franciscanismo… O teatro encontra a mística. Além disso, sem atingirem as alturas de Teresa de Ávila, de João da Cruz, de Tomé de Jesus ou de Agostinho da Cruz, temos Hilarião Brandão, Sebastião Toscano, que nos conduzem com algum fulgor à contemplação do sacrifício de Cristo pelas «chagas, paixão e sangue do filho de Deus», não se esquecendo a obra poética de D. Manuel de Portugal (enaltecido por Sá de Miranda) e «A Arte de Orar» do jesuíta Padre Diogo Monteiro ou o testemunho de Frei Amador de Arrais. Dalila Pereira da Costa pensou a cultura portuguesa lendo-a e interpretando-a. E se a teologia trata do conhecimento de Deus, é preciso ir à mística, onde o intelecto se subordina ao sentimento nela havendo o primado de um conhecimento – amor, vivido e direto; a «especulação do intelecto» vem tão-somente depois, «como esforço de elaboração, desocultação e organização desse conhecimento primeiro dado: e então será teologia mística».


Guilherme d’Oliveira Martins

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