A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Crónica de uma Travessia – A Época de Ai-Dik-Funam» de Luís Cardoso (Dom Quixote, 1997) e «A Nona de Pinto Brás (Novela Timorense)» de Luís Filipe Thomaz (Fundação D. Manuel II, 2010) são duas obras que estiveram nas nossas mãos na recente peregrinação a Timor-Leste. Foram elementos da maior utilidade. Como veremos na crónica que se segue, a terceira sobre a nossa viagem, as duas escritas são marcantes e merecem leitura atenta.

A VIDA DOS LIVROS
de 24 a 30 de Outubro de 2011



«Crónica de uma Travessia – A Época de Ai-Dik-Funam» de Luís Cardoso (Dom Quixote, 1997) e «A Nona de Pinto Brás (Novela Timorense)» de Luís Filipe Thomaz (Fundação D. Manuel II, 2010) são duas obras que estiveram nas nossas mãos na recente peregrinação a Timor-Leste. Foram elementos da maior utilidade. Como veremos na crónica que se segue, a terceira sobre a nossa viagem, as duas escritas são marcantes e merecem leitura atenta.



Paisagem em Timor


DA ILHA DAS FLORES…
Partimos da Ilha das Flores depois de um banho de mar às seis da manhã, sob o sol que despontava. Havia uma leve neblina. Sentimo-nos muito bem perante a simpatia de quem nos acolhia nesta ilha que tanto nos diz. Passamos por Kupang, em Timor Ocidental, e daí vamos para Dili. Na aproximação aérea, Luís Filipe Thomaz vai identificando cada ponto da costa, recordando com humor as suas vivências imaginosas. Chegados com bom tempo, sentimo-nos como que regressados a casa. Continuamos a ser tratados com esmero e depois de um almoço com iguarias portuguesas no «Boca Doce» – desde o bacalhau à carne assada – vamos ao Cemitério de Santa Cruz, onde a 12 de Novembro de 1991 tudo mudou na defesa da independência timorense. As imagens do massacre, salvas graças à inteligência e ao heroísmo de Max Stahl, correram o mundo e permitiram uma onda de solidariedade em torno de uma causa justa. Paramos simbolicamente no lugar onde os filmes foram escondidos. Com o sol a declinar, fizemos o percurso de há vinte anos, até à campa de Sebastião Gomes, o jovem morto na vigília em Motael, que levou as pessoas nesse dia a Santa Cruz. Naquele momento, lembrei-me de Teresa Santa Clara Gomes, grande entusiasta e amiga do povo timorense, que bem gostaríamos pudesse estar connosco. Ruy Cinatti diz-nos: «Quando passo a horas mortas / (passava – de que vale o tempo?…) / ali, à beira das campas, / ouço dizer: Vem, amigo! / O espaço de nada vale! / Ganharás centos por cento! / Vem-nos fazer companhia!».


CRÓNICA DE UMA TRAVESSIA
Ao voltar a Timor-Leste, lembramos a sua literatura – e em especial a «Crónica de uma Travessia – A Época de Ai-Dik-Funam» de Luís Cardoso (Dom Quixote, 1997). Se temos falado da «Peregrinação», esta «Travessia» é o caminho da memória de um povo, com uma vida carregada de vicissitudes e incertezas. Quem tem por Timor um especial afeto sabe que, sem ilusões, tem de haver uma forte solidariedade capaz de permitir compreender os erros e as fraquezas e de tirar as lições certas para o futuro. E não podemos esquecer o que Luís Cardoso diz, com especial empenho: «o estudo era a tarefa prioritária para desmistificar a dita maldita de um célebre prelado que dizia que a Timor mais valia picareta que caneta». E aqui estudo é educação e desenvolvimento, é sabedoria a transmitir, é cultura de paz. E recordamos os tempos imemoriais do ciclo agrícola, quando lemos, de Luís Filipe Thomaz, «A Nona de Pinto Brás (Novela Timorense)»: «Quando a chuva cessava e o capim se tornava amarelo nas faldas das montanhas,  segava-se o milho e o arroz; quando as noites se tornavam mornas, a anunciar o recomeçar das chuvas, queimava-se a terra para preparar a sementeira, e punha-se em torno da horta um pagar, para evitar que os animais à solta roessem os rebentos. Depois, quando a chuva começava a cair regularmente das duas às quatro da tarde em cada dia, levavam-se os búfalos a pisar a várzea e lançava-se à terra o néli – até que finalmente a chuva voltava a cessar, as faldas da montanha trocavam o seu verde de esmeralda por uma tonalidade fulva ou violácea, e se podia, uma vez mais, segar o milho e o arroz».


ATÉ BAUCAU…
No dia seguinte, com estes ecos na lembrança, vivemos uma longa jornada por estrada de Dili a Baucau. Foi uma aventurosa viagem em jeeps, com vários sobressaltos. Primeiro, a paisagem xistosa, depois, a calcaria; primeiro, o verde e depois, o amarelo, até Manatuto a pequena propriedade e o regadio, depois a estepe seca. E lá está o Ili Manu, onde velam as almas dos antepassados. O mar tornou-se azul, com o esplendor do sol. É Timor-Leste na sua pujança: acolhedor e agreste, intenso e doce. Até os mangais conseguem o milagre de medrarem em água salgada, com apenas umas parcas horas de água-doce. Chegamos a Baucau uma hora depois do previsto. D. Basílio do Nascimento espera-nos com hospitalidade e a afabilidade, que tão bem conhecemos. Um coro feminino de jovens na Catedral diz-nos que somos bem-vindos. O seu português é doce e pouco inseguro, servido por olhares transparentes e simpatia tocante. No almoço esboçam-se ideias e projetos, e não há sombra de dúvidas quanto estarmos em ambiente familiar e bem português. No entanto, foi tudo muito rápido em Timor-Leste. E rememoramos o conto de Sophia sobre o «Anjo de Timor» – «Há muitos, muitos anos, em Timor, vivia um liurai muito poderoso e muito bom. Na sua juventude resolveu ir correr mundo, para se tornar mais sábio». A construção desta jovem nação obriga a muito trabalho, a muita determinação e a superar tentações temperamentais e fragmentárias. A generosidade tem de se tornar democrática e permanente. Partimos de manhã bem cedo para as Molucas do Sul, a fim de ver com os nossos próprios olhos um dos cenários mais importantes da presença portuguesa a Oriente do Oriente. Apesar dos pequenos atrasos inevitáveis, sobretudo tratando-se de um voo fretado, chegamos à baía de Amboino ao fim da manhã e embrenhamo-nos de imediato na cidade equatorial situada numa pequena ilha densamente povoada de floresta. A presença de um tão alargado grupo de portugueses causa surpresa. As autoridades locais não se poupam a esforços para nos serem simpáticas.


A RECORDAÇÃO HISTÓRICA
Luís Filipe Thomaz recorda-nos em pormenor a presença portuguesa, de 1512 a 1605. Aqui chegou a armada de António Abreu, vinda de Malaca a caminho de Banda. Francisco Serrão, depois de naufragar, foi daqui chamado pelos sultões de Ternate e Tidore. Amboino era pouco frequentada por mercadores, por não produzir as especiarias que os portugueses aqui introduziram, depois de 1564. Começaram então a ser construídas fortalezas, primeiro em madeira e depois em pedra, na atual cidade – estando a de Nossa Senhora da Anunciada pronta entre 1592-93. Foi significativo o papel do capitão Sancho de Vasconcelos e da Companhia de Jesus, tendo S. Francisco Xavier lançado as bases de uma missão na cidade, nos anos quarenta do século XVI. A insurreição de Ternate de 1570 e a subsequente fim da presença portuguesa levaram a que Amboino se tenha tornado, no fim do século, o bastião da presença portuguesa na área das ilhas de Maluco. E lembramos tudo isto com Monsenhor Andreas Peter Cornelius Sol, M.S.C., bispo católico, de nacionalidade holandesa, com 95 anos, grande estudioso e entusiasta da presença portuguesa na ilha. Reuniu, a suas expensas, um pequeno centro de documentação com variados elementos, livros, mapas, crónicas, revistas, que nos permitem conhecer o que os portugueses aqui fizeram, devendo-se-lhes essencialmente o desenvolvimento de Amboino. Via-se no seu olhar o entusiamo de nos acolher e o genuíno sentimento da saudade. Este foi sem dúvida o momento alto da nossa passagem nesta cidade, onde, apesar de toda a boa vontade do Governador, não obtivemos a autorização militar, que nos foi prometida, para entrar no Forte da Anunciada. Ficámo-nos pelo exterior e por uma longa espera na praça de armas… 


Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter