A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«D. Pedro V, Um Homem e Um Rei» de Ruben Andresen Leitão (Porto, 1950) é o ponto de partida para as considerações de hoje. De facto, a bibliografia de Ruben A. sobre D. Pedro V merece uma especial atenção, não apenas pela sua qualidade documental, mas sobretudo pelo interesse reflexivo, já que o autor considera ter sido o malogrado rei o primeiro homem moderno que houve em Portugal.

A VIDA DOS LIVROS
de 12 a 18 de Setembro de 2011



«D. Pedro V, Um Homem e Um Rei» de Ruben Andresen Leitão (Porto, 1950) é o ponto de partida para as considerações de hoje. De facto, a bibliografia de Ruben A. sobre D. Pedro V merece uma especial atenção, não apenas pela sua qualidade documental, mas sobretudo pelo interesse reflexivo, já que o autor considera ter sido o malogrado rei o primeiro homem moderno que houve em Portugal.



UMA FIGURA EXEMPLAR
Ruben A. apaixonou-se pela figura do rei D. Pedro V, por considera-la um caso à parte na história portuguesa – alguém que não se limitou a olhar-nos dentro das nossas fronteiras, condicionados pelo atraso ou pela distância dos grandes centros. Há, assim, uma aura relativamente a quem, pode dizer-se, encarna o mito sebastianista às avessas. Ao contrário do mito de Alcácer-Quibir, o jovem rei do século XIX representa o desejo de partir das condições concretas para as poder vencer pela ponderação da justa medida. Enquanto D. Sebastião é recordado por ter lançado um ato teatral, em vez de um gesto ponderado e sereno, D. Pedro defende a necessidade de persistência, de disciplina, de trabalho e de razão. Afinal, D. Pedro V, se desapareceu na flor da idade, não deixou uma mensagem impossível ou ilusória, mas sim um apelo à vontade, ao estudo, à necessidade de contrariar os fatalismos. Oiçamos Ruben A. numa síntese feliz, que merece especial atenção: «A noção com que se fica e aquela que a meu ver deve prevalecer na mente do homem que estuda e indaga a vida de D. Pedro V, é a de um espírito universalista adaptado perfeitamente à maneira de ser dos portugueses e enquadrado nas tendências que um mundo novo dava a conhecer, este homem tornou-se orgulho para nós, pois é, de facto, o primeiro homem moderno que podemos apresentar ao mundo, o único na sua época que sabia não ser o nosso atraso proveniente apenas do século XIX, mas que tinha as suas raízes plantadas já no século XVII e no século XVIII». E assim, sentindo por perto a sombra de Herculano (com mentalidade «séria e honesta» e «retidão de carácter», apesar do esfriamento das relações entre o rei e o intelectual a partir de certa altura), descobrimos o monarca como precursor da geração coimbrã, que foi também de 1870.


UM DIÁLOGO INTERESSANTE
É o próprio jovem rei que, nas suas reflexões, apela à exigência, à aprendizagem e a um espírito aberto. E as cartas ao seu tio o Príncipe Alberto, marido da rainha Vitória, com quem estabeleceu uma intensa amizade, são ilustrativas das preocupações que tinha. Para reformar seria fundamental entender a índole do povo. Não bastaria aplicar receitas abstratas. A experiência e a capacidade de aprender deveriam estar em primeiro lugar, muito mais do que a mera transmissão formal de saberes. Do mesmo modo, leiam-se os relatórios reformistas escritos por si, percebendo-se facilmente que o jovem rei contraria, a cada passo, a indiferença e o conformismo com o apelo fundamental, já ouvido antes, de que é necessário acordar o país e pô-lo a funcionar, em benefício de todos. «O indiferentismo é o fatalismo modernizado e aplicado a tudo. Se há quem confunda o indiferentismo com a tolerância, esse homem engana-se muito: os indiferentes que acreditam em crenças e partidos mortos, não se enganam menos» (1856). Como salienta o autor de «O Mundo à Minha Procura», sente-se um humanismo universalista virado para diante, incapaz de se deixar seduzir apenas pela lógica retrospetiva. Afinal, a nossa ciclotímia funda-se, de certo modo, nessa aversão ao passadismo e daí a necessidade que temos de obter estímulos fortes de dificuldade ou de incerteza para nos podermos mobilizar. O medo de existir relativiza-se. E se há quem continue a interrogar Portugal fora duma dimensão positiva, o certo é que precisamos, sobretudo nestes tempos de exigência, de mobilizar energias, para além do cinismo e do ceticismo, para que a periferia, a irrelevância e a mediocridade não se somem.


TRANSPOR PARA OS NOSSOS DIAS
Alexander Ellis, antigo Embaixador do Reino Unido em Portugal e bom conhecedor dos portugueses, fez uma apreciação das nossas qualidades, sem a tentação de apenas ver os aspetos positivos. E lembrou-nos que temos a vantagem de entender a importância das diferenças e da aventura de ir ao encontro dos outros. E fala de uma situação «between the devil and the blue sea». Entre o diabo e o mar azul. O certo é que essa geografia trouxe coisas boas, como a grande abertura de Portugal ao mundo. De facto, a história de Portugal é a história da abertura para o mundo. Se damos costas a Castela, viramo-nos de frente para o mar e o universo. E a curiosidade funciona como acicate e vantagem, que temos de aproveitar melhor, sem ilusões. E Ellis diz-nos que viajamos facilmente, contactamos os outros com facilidade: «este é um país em que posso absorver várias culturas sem sair daqui, o que não é o caso de Espanha» (revista Única, Expresso, 30.12.10). E o que encontramos na apreciação deste entusiasta de Portugal? A abertura que decorre de sermos Finisterra e de nos constituirmos em cadinho de várias diferenças. Mas ainda não devemos esquecer que o coração é «o lugar mais importante do corpo de qualquer português» e que há uma distinção entre o que ficaram e os que partiram. Camões partiu, mas soube compreender o velho que ficou na praia do Restelo a clamar «Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos Fama». E Fernando Pessoa não partiu, mas escreveu e pensou a partir da aventura de ir até ao desconhecido. E a verdade é que a hospitalidade se faz da ligação estreita entre quem recebe e é recebido. E o jovem embaixador dispara certeiro: «o vosso indicador de falta de confiança é o aumento do sebastianismo». E este é exatamente o ponto que D. Pedro V suscitava no seu tempo, e que Ruben A. bem recordava. Aliás, a propósito da atual crise vem à baila a pergunta sobre se não nos sentimos todos responsáveis pela situação a que chegámos. No calor marroquino de Agosto de 1578 foi a fina-flor que se perdeu… As respostas divergem, mas os mais exigentes dizem que, mais importante do que sabermos se nos sentimos responsáveis, é mobilizarmo-nos todos para sair das dificuldades. Naturalmente que a orientação dos governos é necessária e é a que faz a diferença. Por isso, Ruben A. chamava a atenção para o facto de o jovem rei não querer alimentar um sonho sobre uma manhã de nevoeiro, mas sim de desejar sobretudo vontade e trabalho.


QUE PSICANÁLISE MÍTICA?
Para Eduardo Lourenço, autor de uma imprescindível psicanálise mítica sobre o nosso destino, centrada na sábia ligação entre mitos e a vontade emancipadora, afirmou que «a História de Portugal é uma das histórias menos trágicas que conheço entre os países europeus». Não se lhe conhecem episódios da sua existência realmente extemos, a não ser de ordem natural, como no tremor de terra de Lisboa. Mas a verdade é que «os portugueses sempre tiveram essa ideia de que faziam parte de um país protegido. Provavelmente como defesa contra o facto de sentirem a sua fragilidade no confronto com os outros, quer a título individual, quer a título coletivo». É esta ciclotimia que nos condiciona – desde a proteção do «povo eleito» ao cruel estigma dos elementos negativos. Do que se trata é de compreendermos que não sendo nem melhores nem piores do que outros, temos a responsabilidade de nos termos repartido pelo mundo, ao encontro de muitos outros, sem no entanto ter possuído enorme poderio. 


Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter