A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Na edição de 2000 de “O Labirinto da Saudade” (Gradiva), Eduardo Lourenço afirma: «Somos, enfim, quem sempre quisémos ser. E todavia, não estando já na África, nem na Europa, onde nunca seremos o que sonhámos, emigrámos todos, colectivamente, para Timor. É lá que brilha, segundo a nova ideologia nacional veiculada noite e dia pela nossa televisão, o último raio do império que durante séculos nos deu a ilusão de estarmos no centro do mundo. E, se calhar, é verdade». Mas hoje estamos confrontados ainda com outras interrogações.

A VIDA DOS LIVROS
de 25 de Abril a 1 de Maio 2011


Na edição de 2000 de “O Labirinto da Saudade” (Gradiva), Eduardo Lourenço afirma: «Somos, enfim, quem sempre quisémos ser. E todavia, não estando já na África, nem na Europa, onde nunca seremos o que sonhámos, emigrámos todos, colectivamente, para Timor. É lá que brilha, segundo a nova ideologia nacional veiculada noite e dia pela nossa televisão, o último raio do império que durante séculos nos deu a ilusão de estarmos no centro do mundo. E, se calhar, é verdade». Mas hoje estamos confrontados ainda com outras interrogações.



PERDER O ESSENCIAL EUROPEU?
Pode estar-se a perder o essencial europeu na tentação de responder à crise por falta de consciência de que sem cultura e sem justiça poderemos estar a caminho do desastre. De que cultura falo? Da capacidade criadora, da ligação entre conhecimento e compreensão e entre experiência, exemplo e aprendizagem. A que justiça me refiro? À exigência de partilhar recursos e responsabilidades, de prevenir a exclusão e à necessidade de combater o imediatismo cego dos ganhos fáceis. Eduardo Lourenço, no prefácio à edição de 2000 de “O Labirinto da Saudade”, afirmou que «nos seus longos oito séculos de existência – fórmula, no fundo, pouco pensável, pois não tem em conta a permanente reciclagem de si mesma que é a vida de qualquer povo – Portugal nunca sofreu metamorfose comparável à dos últimos vinte anos. Não foi apenas uma mudança exterior, uma dilatação comparável à do tempo em que se tornou país das Descobertas, mas uma alteração ontológica, se isto se aplica a um povo. Estamos tão dentro dela que a não podemos pensar. Que mais não fosse, caracteriza-a o facto de tal metamorfose não ser obra sua, ou eminentemente sua, como o foi noutras épocas. Trata-se de um fenómeno mais vasto, o fim da civilização europeia sob paradigma cristão ou iluminista, se é lícito associar estas duas matrizes da milenária e agora defunta Europa». Para Eduardo Lourenço, Portugal sofre, afinal, dos efeitos de uma profunda alteração no mundo, e a crise financeira a que assistimos é um sintoma evidente, até nas suas consequências dessa mudança. O fim da história, já profetizado por Hegel, não se verificou nem em 1805 nem depois de 1989, o que aconteceu agora foi a entrada de uma lógica de resultados financeiros fictícios pelo campo da economia, que só pode afirmar-se, na sua essência, se criar valor.


UM TEMPO DE JOGO DE ILUSÕES
Afinal, estamos perante o primado da especulação, o jogo das ilusões e das aparências, a incapacidade para encontrar instrumentos racionais e justos de resposta às dificuldades. E, no entanto, mais do que receitas infalíveis, que não há, do que precisamos é de ideias simples, a defender e a aplicar com persistência: verdade, transparência, disciplina, rigor, responsabilidade, sobriedade, modéstia, poupança, boas contas – e aquela noção muito simples, da mais funda sabedoria popular, segundo a qual importa não gastar mais do que podemos nem menos do que devemos. A recente presença em Portugal de Amartya Sen, na Universidade de Coimbra, obriga, aliás, a lembrarmos os seus ensinamentos, sobre as relações entre desenvolvimento e liberdade, sobre a relevância da diversidade das culturas e sobre a importância decisiva da noção prática de justiça. O certo é que os episódios que estamos a viver, para lá dos pormenores conjunturais que a história depressa fará desvanecer, demonstram que a União Europeia fraqueja agora no plano económico, por óbvia falta de solidez nos valores fundamentais, que o mesmo é dizer na definição dos interesses vitais comuns e de uma cultura comum.


EUROPA DESENCANTADA E FRAGMENTADA?
Jacques Delors insiste, e não tem sido ouvido, em que a União Europa só poderá persistir, ligando estabilidade e desenvolvimento humano, com um projecto de segurança e de paz (e como poderá sê-lo quando os egoísmos nacionais estão em primeiro lugar?), de desenvolvimento sustentável (e como poderá sê-lo se a fragmentação e o protecionismo prevalecem, em vez da coesão e dos interesses comuns?) e de diversidade cultural (e como poderemos continuar a esquecer os valores culturais?). É a coesão económica, social e territorial que falha, por ausência de uma vontade comum de salvar o que é de todos, isto é, a credibilidade de um projecto que se se materializa no Euro, mas que é muito mais do que meramente monetário. Num texto muito importante, pelo rigor da análise e por ligar os fundamentos e os instrumentos, sobre o episódio dos resgates e das dívidas soberanas, Viriato Soromenho Marques e Sérgio Gonçalves do Cabo afirmaram o seguinte: «É isso que se joga no desfecho da crise das dívidas soberanas: aprofundar o nosso destino comum, aperfeiçoando a integração e legitimidade democráticas; ou escolher o recuo às instituições de um nacionalismo serôdio, que será o prelúdio do regresso às fronteiras e às trincheiras. Nada está ainda perdido, mas o abismo está à nossa frente. Teremos, como europeus, coragem e lucidez para dar os passos humildes de um federalismo de legítima defesa, os únicos que nos poderão libertar da catástrofe?» (DN, 10.4.2011). Afinal, parece que há quem pense que uma união monetária pode sobreviver sem fundamentos culturais e sem desígnios de justiça. Não pode. Se se confundir desenvolvimento sustentável com programas de ajustamento fragmentários e se alimentarmos uma lógica de cada um por si, sem coesão e sem partilha de responsabilidades, apenas poderemos esperar a desintegração futura. Dividir a Europa entre credores e devedores e impor, sem mais aos segundos, lógicas recessivas, significa condenar a União ao seu definhamento, com perda de todos. Disciplina, rigor e confiança, sim; mas fragmentação, exclusão e formalismo, não.


TEMPO DE IDENTIDADES VIRULENTAS
No mesmo texto, com que iniciámos, ainda Eduardo Lourenço, sobre a Europa (em que, no fundo, acredita como tábua de salvação, mas não como barca eficaz no funcionamento) afirma: «Deixámos de ser, como durante séculos, uma pluralidade de nações ou povos, potencialmente ou imaginariamente senhores dos seus destinos, embora a ilusão de o ser seja mais forte do que o desmentido permanente que a força das coisas lhes inflige. Sem surpresa, esta avassaladora dissolução das entidades clássicas a que chamávamos nações compensa-se com a reivindicação de micro-identidades  virulentas ou superidentidades simbólicas de que o País Basco, a Irlanda, a Flandres, os novos estados balcânicos, a Catalunha, a Lombardia são exemplos. E ninguém sabe se são apenas vestígios de arcaísmo tribal de nova espécie, se anúncio de um mundo ao mesmo tempo globalizante e intimamente fragmentado». O ensaísta tem razão. De facto, surgem no horizonte realidades que se arriscam a agravar desigualdades e a gerar exclusões. E há falta de capacidade de orientação, capaz de definir o que são interesses e valores comuns, para além da leitura imediatista dos acontecimentos ou do mero domínio da opinião. A História política ensina-nos a necessidade de ser capaz de ver para além do próximo obstáculo, os governos sábios são os que sabem antecipar, prevenindo e agindo no tempo próprio. Como se sabe, no caso português, José Gil fala, a propósito do “medo de existir”, na falta de debate público e na não-inscrição, isto é, no ficar pela superfície das coisas, sem ir ao fundo: “Os portugueses não sabem falar uns com os outros, nem dialogar, nem debater, nem conversar. Duas razões concorrem para que tal aconteça: o movimento saltitante com que passam de um assunto a outro e a incapacidade de ouvir”. Contudo, em Portugal e na Europa é tempo de ouvir e de prever. Quem o lembra? 


Guilherme d’Oliveira Martins

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