A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Luís Salgado de Matos (LSM) tem estudado, de modo aprofundado, o tema do Estado de Ordens, e agora, ao apresentar «A Separação do Estado e da Igreja – Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicismo» (D. Quixote, 2011), analisa com grande cópia de informações inéditas ou pouco conhecidas, e segundo uma cuidada visão de conjunto, a “questão religiosa” no regime de 1910, tema crucial da história contemporânea, que serviu de importante lição para a República contemporânea nascida em 25 de Abril de 1974.

A VIDA DOS LIVROS
de 28 de Março a 3 de Abril de 2011


Luís Salgado de Matos (LSM) tem estudado, de modo aprofundado, o tema do Estado de Ordens, e agora, ao apresentar «A Separação do Estado e da Igreja – Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicismo» (D. Quixote, 2011), analisa com grande cópia de informações inéditas ou pouco conhecidas, e segundo uma cuidada visão de conjunto, a “questão religiosa” no regime de 1910, tema crucial da história contemporânea, que serviu de importante lição para a República contemporânea nascida em 25 de Abril de 1974.  



UMA OBRA PERTINENTE E FUNDAMENTAL
A obra é fundamental e permite compreender e esclarecer a história e uma parte importante dos preconceitos que se criaram a propósito da Primeira República. Começamos, assim, por perceber que católicos e partidários de Afonso Costa reescreveram, de algum modo, a história da separação, à luz dos interesses próprios. A liberdade de consciência, inatacável no plano teórico, foi aplicada tendo em consideração que os católicos eram cúmplices dos rebeldes monárquicos. Daí as expulsões e as proibições, que deram à República uma feição perseguidora e maquiavélica. E, se é verdade que houve «perseguição», segundo os critérios posteriores a 1945, o certo é que temos de lembrar que a monarquia constitucional depois de 1834, e antes o pombalismo, tinham prenunciado já as orientações de 1910. De facto, o regalismo monárquico e o anti-clericalismo oitocentista prepararam o ambiente que favoreceu o republicanismo. Ora a sociedade era muito mais complexa do que poderia parecer, não devendo esquecer-se o anti-clericalismo católico nem o nacionalismo, que levavam o cidadão comum a apoiar o Estado, independentemente do regime. Uma minoria republicana é que defendia a tese radical da perseguição, tendo a maioria alguns cuidados, o que justificava a proposta de pagamento de uma pensão aos párocos e a previsão de vencimentos para os missionários das colónias africanas e do Padroado do Oriente, para além da criação, na Grande Guerra, do corpo de capelães do Corpo Expedicionário. Contudo, há uma tensão evidente, com expressão social e política, sobretudo até 1918, patente no apoio implícito ou no silêncio da Igreja relativamente às incursões monárquicas. Simplificando, os republicanos julgavam que o povo ignaro era monárquico e por isso não poderia haver sufrágio universal, enquanto os bispos consideravam-no crente e defensor da Igreja. Sidónio Pais entendeu, porém, que os párocos não eram monárquicos e que os camponeses eram portugueses. Os bispos só tarde perceberam que os habitantes das cidades eram avessos ao clero e que as elites cultivavam uma atitude favorável à separação.


DEFINIR A RESPONSABILIDADE DO CULTO
Um tema fundamental para analisar a separação é o da definição de qual a pessoa jurídica responsável pelo culto perante o Estado. O modelo brasileiro assentava nas instituições canónicas, misericórdias e irmandades, o modelo francês apontava para a confiança atribuída às igrejas locais (cultuais Briand) e havia ainda as «cultuais» de ateus, quando os crentes não assumissem responsabilidades. A solução «à portuguesa» baseou-se nas três soluções sucessivas e simultâneas, deixando cair a lei Moura Pinto (1918) a terceira solução. Curiosíssimo é verificar que, na análise de LSM, quer os republicanos quer Pio X queriam, à partida, um regime de religião do Estado, tendo a «separação» efectiva sido feita com resistências de parte a parte. Os republicanos desejavam o regalismo e o Papa uma religião da nação, e o ponto de equilíbrio veio a ser encontrado na quase total separação, que significava a liberdade da Igreja. O autor afirma ainda que a lei da separação dividiu republicanos e católicos, originando um jogo triangular com os monárquicos. Entre os católicos, digladiavam-se os monárquicos abolicionistas da República e os centristas que aceitavam o «ralliement» (adesão) de Leão XIII; os republicanos separavam-se entre afonsistas e almeidistas e os monárquicos entre manuelistas e legitimistas (miguelistas). De facto, houve uma aproximação entre legitimistas e a República laica (de que é exemplo o pároco de Santa Isabel, Padre Santos Farinha), contra os monárquicos liberais regalistas, inimigos antigos. Daí resultaria a aceitação das irmandades cultuais. Do lado republicano, os carbonários desinteressaram-se do fenómeno católico e Afonso Costa teria usado a questão religiosa para fortalecer a sua posição política, unindo as hostes e limitando o poder dos laicistas, e não tanto para exterminar a religião. Costa sabia que o regime concordatário daria mais liberdade à Igreja do que ela tinha tido na monarquia, não podendo a República prescindir do velho beneplácito régio. Por outro lado, católicos ilustres, como Abúndio da Silva, entendiam que Afonso Costa poderia ser necessário.
 
A DEFESA DO «RALLIEMENT» POR BENTO XV
Quanto à Santa Sé, começou por condenar em absoluto a lei da separação, mas depois de 1918, com Bento XV, enterrou a questão religiosa, reconheceu a República, rompeu com o isolamento internacional, preveniu uma perseguição europeia e abriu caminho ao fortalecimento das missões ultramarinas. Bento XV e Pio XI, inteligentes e bem informados, com o embaixador português do Vaticano, Joaquim Pedro Martins, persistente e lutador no sentido de contrariar os excessos laicistas e as reticências da cúria, contribuíram decisivamente para ultrapassar o conflito. E a surpresa que a investigação revela tem a ver com D. Manuel II e a sua táctica contra o papado. Estamos perante a subtil arte da ocultação – e lembram-se os casos do apoio aos socialistas de Aquiles Monteverde contra os republicanos em vésperas do 5 de Outubro, do financiamento das incursões monárquica (1911 e 1912), da autorização da revolta de 1919 ou da oposição ao Centro Católico. O certo é que o exercício de poderes do rei constrangeu o papado. Por seu turno, a política dos bispos falhou, com a recusa das cultuais, com a exclusão de um pólo católico republicano e com o relativo fracasso do Centro Católico. O capital de queixa acumulou-se, mas com distanciamento do papado. A divisão do episcopado e a desorganização dos católicos deu, entretanto, trunfos aos inimigos da Igreja. O Cardeal Patriarca Mendes Belo era manuelista e não estava em consonância com o Papa, o que enfraqueceu a posição da Igreja. Como afirmou o actual Bispo do Porto, o facto de a Igreja portuguesa não se ter desvinculado da monarquia liberal porque não pôde ou não soube seguir as orientações europeias levou-a “a ser demasiado estática no seu centro e pouco estimulante para as periferias internas e externas”. A separação induziu, assim, uma Igreja mais clerical, pouco estruturada, mas, no dizer de LSM, “devota e religiosa”. Em suma, a questão religiosa foi central na vida e morte da Primeira República, porém os extremos ganharam. Como afirmou António Maria da Silva: “a intransigência de uns gerou a intransigência de outros e os reaccionários de vários matizes acudiram em pé de guerra”.     


Guilherme d’Oliveira Martins


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