A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

A viagem que fizemos ao Japão foi uma oportunidade fantástica para usufruirmos a hospitalidade, a história e a tradição de um povo antigo que conhecemos desde o século XVI. Fomos no rasto de Wenceslau de Moraes e, por isso, levámos connosco o pequeno livro de Ana Paula Laborinho “O essencial sobre Wenceslau de Moraes” (INCM, 2009), que muito nos ajudou, uma vez que o escritor muito nos ensina sobre essa cultura extraordinária e inesgotável. Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao arquipélago de Cipango. Ainda hoje sentimos o peso desse conhecimento ancestral. Fomos, de facto, tratados principescamente e verificámos que Portugal não é indiferente para os japoneses. É fundamental, assim, que conheçamos melhor a cultura japonesa, uma vez que todos teremos a ganhar com o aprofundamento dessa relação.
Guilherme d’Oliveira Martins

de 17 a 23 de Janeiro de 2011


A viagem que fizemos ao Japão foi uma oportunidade fantástica para usufruirmos a hospitalidade, a história e a tradição de um povo antigo que conhecemos desde o século XVI. Fomos no rasto de Wenceslau de Moraes e, por isso, levámos connosco o pequeno livro de Ana Paula Laborinho “O essencial sobre Wenceslau de Moraes” (INCM, 2009), que muito nos ajudou, uma vez que o escritor muito nos ensina sobre essa cultura extraordinária e inesgotável. Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao arquipélago de Cipango. Ainda hoje sentimos o peso desse conhecimento ancestral. Fomos, de facto, tratados principescamente e verificámos que Portugal não é indiferente para os japoneses. É fundamental, assim, que conheçamos melhor a cultura japonesa, uma vez que todos teremos a ganhar com o aprofundamento dessa relação.



QUIOTO, CIDADE ÚNICA
Quioto é uma cidade especial. Aqui sente-se bem a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. Estamos na antiga cidade imperial, qualidade que perdeu em 1868, depois de ter havido entre os séculos XVII e XIX uma partilha de influência política com a cidade de Edo, hoje Tóquio, até à revolução Meiji. A cidade é marcada pelo rio Kamo e está situada entre três montanhas. Depois de descansarmos um pouco, após a longa viagem que nos trouxe de Lisboa a Osaka, via Paris, fizemos o que se deve fazer numa cidade a que chegamos pela primeira vez, sobretudo quando tem uma cultura que nos não é imediatamente familiar: a solução é caminhar, com alguém que conheça o lugar e nos possa guiar até ao coração da urbe. E assim, fomos até ao bairro de Gion, que conhecemos das narrativas e descrições romanescas, e aí pudemos ver o desenho tradicional de uma antiga cidade nipónica. Há muitos restaurantes tradicionais, há muito movimento, edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos de papel iluminados. Vêem-se geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. Era no Outono, uma das estações privilegiadas do Japão, e havia uma especial alegria e jovialidade no ar, mesmo que a noite já tivesse caído há algum tempo. Não havia humidade e a temperatura rondaria os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, recordamos a importância do Kabuki e a sua evolução. Apesar de ter sido fundado por mulheres, a verdade é que estas foram banidas sob acusação de prostituição, e há muito que o Kabuki passou a ser representado apenas por homens. Complexas maquilhagens permitem distinguirmos o Kabuki do teatro Noh, mas as diferenças são profundas, indo do burlesco à erudição. No restaurante Nishisaka, onde jantamos, sentamo-nos no chão, como tradicionalmente, descalços, e usufruímos uma refeição de um delicioso shabu shabu, pequenas fatias de carne de vaca cozidas por nós em água a ferver, que Camilo Martins de Oliveira nos aconselha, merecendo o aplauso geral.

O AMBIENTE DOCE DE GION
Quando no dia seguinte voltámos a passar por Gion, de manhã cedo, a quietude imperava, num ambiente doce. O rio Kamo é referido pela guia com veneração. As suas águas protegem a cidade e os seus habitantes. Nas margens, passamos pela rua de Pontocho, popularíssima e uma das marcas da cidade. Aqui a referência aos portugueses não se faz esperar. Neste local ficaria um banco de areia e diz a tradição que os nossos compatriotas chamar-lhe-iam ponte. Daí a designação da rua e do local. Passámos a reparar que sempre que se falava dos portugueses os olhos dos nossos interlocutores brilhavam de satisfação. Há um genuíno gosto pelo que somos e pelo facto de termos sido os primeiros europeus a chegar. Naquele lugar distante, fomo-nos assim sentindo em casa. O sol iluminava a cidade e as montanhas e começámos a perceber a beleza extraordinária do «momiji». As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), o escritor português que se apaixonou pelo Japão e cujos textos nos acompanham como ajuda preciosa, disse que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima. Nessa manhã cristalina, fomos, ao Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, que literalmente se apagava diante daquela natureza outonal pujante. Depressa percebemos que o importante não era o facto de a prata nunca ter sido colocada para tornar o edifício espectacular. Tudo se passava, afinal, como se apenas faltasse a prata para espelhar a pujança dos jardins, pois o essencial era o movimento das plantas e a ordenação magnífica da natureza. É a memória do xógum Yoshimasa, no distante século XIV, que está presente, neste edifício a partir da recordação de seu avô Yoshimitsu, que num gesto de suprema audácia, cobriu de folha de ouro o Pavilhão Dourado, o surpreendente Kinkaku-ji, celebrado por Mishima… Mais do que a prata ou o ouro, o importante era o enaltecer da natureza em toda a sua intensidade. E talvez a ausência da prata pudesse ter sido um desígnio divino, para que as árvores e as plantas pudessem tornar-se mais evidentes na sua magnitude.

O OUTONO MÁGICO DO «MOMIJI»
O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelos caminhos do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Depois, vamos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo em direcção ao templo zen de Nanzen-ji. A designação recente do percurso deve-se ao filósofo Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar simbólico obrigatório para a compreensão da cultura japonesa. Os tons vermelhos e amarelos das folhas do Outono inebriam-nos, o sol e o dia ameno contribuem para o nosso deleite.


«SÊ MESTRE DA TUA MENTE»
Chegados a Nanzen-ji sentimos que a lição «sê mestre da tua mente» é um elemento fundamental nesta cultura do conhecimento e da compreensão. A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo dá-nos a impressão de que estamos num lugar essencial para a cultura zen. Este portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram num cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura tradicional japonesa do século XVII da autoria de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. A verdade é que a relação do tempo e do universo tem sempre uma importância especial. Sentimo-lo no equilíbrio entre a arte e a natureza em Nanzen-ji, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji, nessa tarde. A preparação, a simbologia e os gestos – tudo exige um forte domínio do corpo e da presença, em nome do respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia. No fundo, o culto é muito mais do que uma tradição, é um gesto litúrgico, até de influência cristã. Folheamos “O Culto do Chá” de Wenceslau de Moraes: «nos templos famosos em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de mostrar as relíquias e os museus». Que mais dizer? 


Guilherme d’Oliveira Martins

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