A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Miguel Real tem-se dedicado a uma tarefa fundamental que merece especial atenção de todos quantos se interessam pelo aprofundamento da reflexão sobre a cultura portuguesa. Por isso tem estudado o lugar de autores como o Padre António Vieira ou Eduardo Lourenço, com resultados muito apreciáveis pela pertinência da reflexão e pela fecundidade das pistas lançadas. Partindo de “Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa” (Quidnovi, 2008) procuramos hoje analisar algumas das constantes que caracterizam a cultura portuguesa ao longo dos séculos. Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS
de 13 a 19 de Dezembro 2010


Miguel Real tem-se dedicado a uma tarefa fundamental que merece especial atenção de todos quantos se interessam pelo aprofundamento da reflexão sobre a cultura portuguesa. Por isso tem estudado o lugar de autores como o Padre António Vieira ou Eduardo Lourenço, com resultados muito apreciáveis pela pertinência da reflexão e pela fecundidade das pistas lançadas. Partindo de “Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa” (Quidnovi, 2008) procuramos hoje analisar algumas das constantes que caracterizam a cultura portuguesa ao longo dos séculos.



UMA PROCURA INCESSANTE
Miguel Real tem procurado analisar a cultura portuguesa a partir da sua originalidade e das suas especificidades, demarcando-se quer das concepções providencialistas quer do centramento obsessivo no período dos Descobrimentos. Deste modo, tem preferido “uma via mais historicista e menos ideológica”, ousando apresentar uma configuração, “fundada em pressupostos mais históricos e menos míticos, segundo a qual cada período da cultura portuguesa vale por si”. Assim, o autor distingue quatro atitudes intelectuais que caracterizam a cultura portuguesa ao longo dos tempos. Antes do mais, refere o modelo lírico-espiritual que privilegia os aspectos metafísicos, subjectivos, ascéticos, sentimentais e morais da realidade. O próprio Camões e a sua poesia lírica e épica integram-se neste entendimento – mas, além dele, temos de D. Duarte a Sophia de Mello Breyner. Depois, importa referir a perspectiva racionalista, privilegiando menos a ciência pura e mais a prática científica, de modo a destacar os aspectos positivos e materiais da realidade, com especial valorização da experiência. Aí temos de referir de Garcia de Orta ou Pedro Nunes a Egas Moniz. Mas, dentro da mesma atitude racionalista, há ainda o ponto de vista historicista, que visa apreender o movimento dinâmico da sociedade – o que envolve dos cronistas quinhentista até António Sérgio ou Eduardo Lourenço. Em terceiro lugar, temos a atitude modernista, que procura seguir (mais do que imitar) processos, formas e conteúdos de práticas literárias e culturais europeias, merecendo realce os casos de Sá de Miranda até Camilo Pessanha ou Álvaro de Campos. Por fim, há a concepção providencialista, que privilegia os aspectos épico-messiânicos da História e que tem como defensores desde os cronistas e historiadores de Alcobaça ou do Padre António Vieira até Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.
 
TIRAR CONSEQUÊNCIAS
Diga-se em abono da verdade que é pertinente a consideração destas quatro atitudes, ainda que as fronteiras sejam ténues e de difícil apreensão. Nota-se o caso de Fernando Pessoa, em que o autor da “Mensagem” pode ser considerado providencialista, ao contrário de outros dos seus heterónimos, como os casos de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, nos quais se nota mais nitidamente o pendor modernista. O certo é que, se os quatros campos permitem uma melhor compreensão das várias atitudes possíveis perante a explicação da identidade e da razão de ser de Portugal, temos de entender que na maior parte dos casos há uma ligação ente as diversas atitudes num completamento crítico que permite chegar à percepção da realidade complexa que uma sociedade sempre envolve. Daí que a simplificação explicativa seja empobrecedora, até porque com uma História rica, como a nossa, há sempre a coexistência de elementos contraditórios e um jogo social de forças que leva à impossibilidade de respostas unívocas relativamente aos grandes enigmas históricos e sociais que sempre existem. Miguel Real fala, por isso, de cinco períodos com características próprias: (a) da formação da nacionalidade à segunda metade do século XVI, com a presença bem marcada das quatro atitudes referidas; (b) a dominante providencialista do século XVII, em razão das dificuldades históricas e políticas do tempo, apesar da coexistência com outras atitudes; (c) a força da vertente racionalista ao longo do século XVIII por influência da emergência iluminista; (d) já a conflitualidade entre as diversas atitudes vai caracterizar o século XIX, no qual a liberdade de pensamento e o individualismo irão favorecer o pluralismo, a diversidade e a tensão crítica entre as várias concepções; (e) quanto ao século XX, temos de entender que a emergência das ditaduras suscitou inevitavelmente a existência de tensões com expressão pública, entre as diferentes concepções a considerar. Neste último período, nota-se até 1926, o predomínio racionalista e o confronto com o modernismo, enquanto entre 1926 e os anos sessenta o providencialismo de Estado está confrontado com o racionalismo, o espiritualismo e o modernismo, os quais, de modos diversos, pretendem moldar a acção, de forma que a unicidade providencialista não possa pôr em causa a liberdade. Por fim, Miguel Real apresenta o que designa como dez categorias essenciais da cultura portuguesa, onde encontramos instrumentos muito úteis para o diagnóstico e tratamento dos problemas que se manifestam.
 
CATEGORIAS PARA NOS ENTENDERMOS
As dez categorias para que aponta o ensaísta permitem conhecer melhor a realidade que nos é dada. Senão vejamos: (1) o carácter lírico da cultura portuguesa provém das origens (dos trovadores) e foi sofrendo alterações e ajustamentos; (2) a chamada teoria da saudade surge à luz do dia com o “Leal Conselheiro”, aprofundando-se sobretudo a partir de então; (3) o modernismo português vem de Sá de Miranda e parte do pressuposto que o intelectual deve ter uma atitude crítica perante o Estado; (4) a “Menina e Moça” de Bernardim representa a génese da espiritualidade especificamente portuguesa, abrindo campo à exploração psicológica e metafísica do universo interior português; (5) a dramaturgia de Gil Vicente marca a vertente da crítica social da nossa cultura; (6) o pendor fatalista encontra-se em António Ferreira e na tragédia “A Castro”, ponto de encontro de um dos mais vivos mitos portugueses, o de Inês de Castro (em que amor e poder se chocam) tratado segundo os cânones clássicos; (7) as “trovas” do Bandarra significam a afirmação do messianismo e do fatalismo, também com forte marca fatalista; (8) em contrapartida, as crónicas de Fernão Lopes põem a tónica numa vertente realista da cultura, igualmente marcante; (9) enquanto a análise historiográfica e a consideração crítica dos factos estão evidenciadas nas obras de Zurara, Rui de Pina, Castanheda e João de Barros; e (10) a perspectiva científica está bem presente nas obras de Abraão Zacuto e Duarte Pacheco Pereira, bem como em Pedro Nunes e Garcia de Orta.
 
QUE IDENTIDADE COMPLEXA?
Ora, sendo a identidade portuguesa resultado da convergência de diversas influências, sendo o território português dominado por diferentes características (que levaram Orlando Ribeiro a falar de um continente em miniatura) e sendo o povo português resultado de um cadinho (melting pot) profundamente rico e heterogéneo, fácil é de compreender a pluralidade de categorias mentais permanentes na nossa cultura: lirismo constitutivo, presença da saudade, mimetismo relativo à influência externa, oposição intelectual ao estatismo, forte inclinação à espiritualidade, literatura como meio de denúncia, tendência fatalista e providencialista, realismo social, importância da historiografia e disponibilidade (não tão clara quanto desejável) para a ciência.   


Guilherme d’Oliveira Martins


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