A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“O Bazar Alemão” de Helena Marques (D. Quixote, 2010) é um romance com todos os ingredientes para prender os leitores do princípio ao fim e por boas razões – a narrativa, o enredo, a escrita, as personagens, o tema, o tratamento das atitudes e dos sentimentos. E é preciso que se diga que a autora, tem provas dadas, como escritora segura, com excelente domínio da língua portuguesa e da arte de contar. E que devemos pedir, antes de tudo, de um romance? Que nos motive, que nos interesse e que nos deixe com a sensação de que nos foi contada uma história com princípio, meio e fim.

A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de Setembro de 2010.



“O Bazar Alemão” de Helena Marques (D. Quixote, 2010) é um romance com todos os ingredientes para prender os leitores do princípio ao fim e por boas razões – a narrativa, o enredo, a escrita, as personagens, o tema, o tratamento das atitudes e dos sentimentos. E é preciso que se diga que a autora, tem provas dadas, como escritora segura, com excelente domínio da língua portuguesa e da arte de contar. E que devemos pedir, antes de tudo, de um romance? Que nos motive, que nos interesse e que nos deixe com a sensação de que nos foi contada uma história com princípio, meio e fim.



UM CAMINHO SEGURO. – Helena Marques é uma escritora de raiz. Os seus livros merecem referência e atenção especiais – “O Último Cais” (1992), “A Deusa Sentada” (1994), “Terceiras Pessoas” (1998) e “Íbis Vermelhos da Guiana” (2002), bem como o volume de contos “Ilhas Contadas” (2007). Apesar de nascida em Carcavelos, cedo foi para a Madeira, de onde era originária uma parte da sua família. Iniciou a carreira jornalística em 1968 no “Diário de Notícias” do Funchal, passando, de regresso a Lisboa, pelos jornais “República”, “A Luta” e “Diário de Notícias” de Lisboa, onde foi directora-adjunta até 1992. Sendo uma romancista com provas dadas, não se pode dizer que é uma jornalista no território do romance. O caso de Helena Marques é especial, uma vez que se nota nela uma clara distinção entre o modo de usar a escrita jornalística e o domínio do romance. Como escritora, revela uma grande facilidade na escrita e um excelente domínio da narrativa. Se é verdade que eu próprio tenho incentivado as incursões no romance de vários jornalistas, uma vez que é fundamental que a escrita seja cultivada, independentemente de o ser por escritores profissionais ou de vocação, a verdade é que devemos tratar este caso como singular. De facto, a renovação da narrativa pode e deve ser conseguida e enriquecida, através de múltiplos contributos, de origens diversas, porém, o caso de Helena Marques é diferente, com ela não se notam os tiques do jornalista, uma vez que sabe distinguir a técnica noticiosa de um relato romanesco. Assim, a escritora duplica-se, com assinalável qualidade, tendo sido simultaneamente uma das grandes jornalistas da sua geração, afirmando-se também como uma romancista de provas dadas. O mundo do jornalismo também perpassa no livro, apesar de tudo: Mike começa a trabalhar para P.G. Brennan, o proprietário do “Notícias”, onde aprende o que é o “editing” e o que é a “ded line”… É um testemunho afectuoso da autora…

UM ENREDO APAIXONANTE. – Elisabeth e Eugen Beckmann são as referências fundamentais desta obra. Anne Martina Emonts fez uma investigação histórica de grande valia sobre as perseguições sofridas pela comunidade de judeus residentes na Madeira – que a escritora aproveitou com grande eficácia. E os Beckmann (personagens reais, que a autora conheceu) foram alvo dessas perseguições, persistentes e atrozes. O romance é o cumprimento de uma obrigação moral devida a essas figuras reais, que a Helena Marques conheceu, aparentemente belas, afáveis e felizes, mas que escondiam o grande drama da suspeita e da culpa – uma suposta culpa ancestral, justificativa de uma perseguição intolerável, que levou ao extermínio da “solução final”. “O Bazar Alemão” cruza uma história real com personagens fictícias, e esta é a forma pela qual melhor se pode compreender um tempo em que o heroísmo se confundiu (como quase sempre acontece) com a normalidade, com o medo e com a dúvida… “O Funchal está cheio de boatos de guerra… Tu que vens de Londres, tens informação mais segura para nos dar?”… De facto, há um pano de fundo, muito bem descrito e analisado, que é o da banalização do mal (de que fala Hannah Arendt). Miriam e Izaak são dois exemplos significativos. Apesar de vindos da Polónia vão ser alvo das investidas do casal Bromberger. É trágica e cómica a cena de Maria Bromberger, “abrindo o saco”, para tirar três pequenas bandeiras alemãs, bandeiras da cruz suástica: “e com um grande sorriso declarou-lhes que deveriam colocá-las nas duas montras do estabelecimento e a terceira sobre o balcão, logo à entrada”… Helena Marques é competente e rigorosa, juntando razão e emoção. Sem teorizar, sem fazer considerações teóricas sobre o tema, diz tudo o que é preciso dizer, através dos diálogos, das ameaças, das suspeições, das pressões… Sentem-se o ódio e a cegueira destrutivos, mas também o amor da vida e a capacidade de ultrapassar a tentação do decaimento inexorável. O final é uma boa ilustração disso mesmo (com Elisabeth e Eugen a encontrarem uma saída para um nó górdio que parecia não ter solução) – mas abster-me-ei de qualquer revelação sobre o enredo e a história.

UM HORIZONTE NEGRO. – A guerra é uma sombra terrível. Ela está sempre no horizonte, mesmo num cenário de placidez madeirense. Sente-se claramente o que mais inquietante revela a história europeia da barbárie, nesse Portugal dos anos trinta, em que a neutralidade era subtilmente comprometida. Tudo isto, no último lugar em que tal poderia ser concebível, num lugar em que se julgaria que o medo não podia instalar-se, perturbador e omnipresente. E o mais estranho e paradoxal é que em “O Bazar Alemão” é a sombra da guerra que ainda não aconteceu que se sente. De facto, não se assiste nem a um só minuto de guerra autêntica, nem a um só momento determinado pela guerra declarada em 1939. No entanto, é já a guerra que dita as suas leis, como através dos ecos do bombardeamento de Guernica. Helena Marques apenas retrata o acastelar das nuvens negras no horizonte. A tempestade anuncia-se, e a história suspende-se no momento em que a conflagração em territórios distantes vai ter lugar. Mas isso já não é importante para o casal Beckmann, uma vez que, temos a sensação de que, a partir da última página do romance tudo vai correr a favor deles, por muito que o sofrimento e a tragédia atinjam níveis inconcebíveis de violência. Com muita inteligência e o conhecido domínio da palavra, Helena Marques não precisa de dizer tudo, basta-lhe aludir, referenciar e assinalar subtilmente. E sente-se ainda a memória familiar, bem expressa na sentida dedicatória do livro à memória do avô Vasco Gonçalves Marques, senador da República, cidadão exemplar que incutiu na família o culto da liberdade e da honra.

A PRESENÇA DAS MULHERES. – Mas há ainda o papel especial reservado às mulheres e ao seu heroísmo sereno. Helena Marques não esconde a sua costela cidadã nessa valorização do feminino, factor marcante de igualdade e de diferença. E muitas vezes ao ler estas páginas, lembramo-nos de Margarida Dulmo, outra grande heroína insular, imortalizada por Vitorino Nemésio. De facto, contra a ameaça do medo, temos a força da determinação do sentimento e do amor. Com grande subtileza, mas com fronteiras claras, em nome da dignidade e da emancipação, o que se nota nesta obra de Helena Marques? O mundo exterior coexiste com a alma das casas, e o mundo interior confronta-se com a ambivalência do amor. E a força de ânimo (antes de mais das mulheres) permite que se assista ao combate silencioso e pacífico de construção de correntes de generosidade e de abnegação, contra a imposição do ódio. E se falo de ambivalência do amor é porque a violência e a injustiça reclamam a entrega e a compreensão. Daí o sublime final, que não pode deixar de ser citado como símbolo emblemático de toda a obra: “A minha casa és tu. Onde estiveres será sempre a minha casa” – diz Eugen a Lisbeth. Sente-se a marca da autora, não como uma cedência subjectivista, mas como um sinal de reconhecimento pela importância da memória, que as casas trazem consigo e que as sagas romanescas conseguem recuperar com a sua força original.


Guilherme d’Oliveira Martins


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