A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

O “Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal”, dirigido por José Eduardo Franco, José Augusto Mourão e Ana Cristina Costa Gomes (Gradiva, 2010) é um repositório exaustivo sobre o tema proposto, que abrange, ao longo de mais de mil páginas, instituições cristãs (católicas, protestantes e evangélicas), hindus e budistas, esotéricas, maçónicas, templárias, neotemplárias e míticas, honoríficas e civis e profissionais. Trata-se de um trabalho de vários anos, elaborado com rigor e sentido pluralista, que merece elogio, por se afirmar como uma obra de referência da maior utilidade.

A VIDA DOS LIVROS
de 6 a 12 de Setembro de 2010


O “Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal”, dirigido por José Eduardo Franco, José Augusto Mourão e Ana Cristina Costa Gomes (Gradiva, 2010) é um repositório exaustivo sobre o tema proposto, que abrange, ao longo de mais de mil páginas, instituições cristãs (católicas, protestantes e evangélicas), hindus e budistas, esotéricas, maçónicas, templárias, neotemplárias e míticas, honoríficas e civis e profissionais. Trata-se de um trabalho de vários anos, elaborado com rigor e sentido pluralista, que merece elogio, por se afirmar como uma obra de referência da maior utilidade.



Convento de Cristo, janela Manuelina


UM DICIONÁRIO OPORTUNO
Perguntar-se-á qual a utilidade de um dicionário com estas características. E a resposta é fácil. Trata-se de preencher uma lacuna existente, que era tanto mais evidente quanto é certo que a identidade histórica portuguesa tem muito a ver, desde as suas origens, com diversas ordens religiosas, e, depois, ao longo dos tempos, com instituições religiosas e profanas, que são analisadas nesta obra, percebendo-se os nexos de continuidade, as transformações e as linhas de inovação social. “Tão só queremos explorar (dizem os autores) e abrir decisivamente as portas de um caminho novo e apaixonante de conhecimento, facultando, de forma clara, distinta e sistemática, a informação já existente sobre as ordens e acrescentar-lhe um pouco mais através do processo de pesquisa que todas as equipas envolvidas, que aceitaram o nosso convite à colaboração realizaram com grande dedicação, apesar da escassez de meios disponíveis”. De facto, os objectivos pretendidos são alcançados, pela cópia de informação disponível e pela forma como a exposição é feita nas diversas entradas. Quanto à oportunidade, não podemos esquecer que a reflexão sobre o republicanismo no início do século XXI obriga-nos à compreensão histórica do papel das Ordens e Congregações na História a uma nova luz. E essa é a luz da sociedade aberta e pluralista moderna, onde todos os contributos são necessários e devem ser tidos em consideração. E se falamos de republicanismo, reportamo-nos à antiga ideia de Res Publica, vinda da Antiguidade clássica e desenvolvida na Europa, designadamente em Itália, desde tempos muito recuados, que não podem fazer esquecer a influência das cidades gregas e a evolução muito rica dos diferentes instrumentos de legitimação política, de que a Respublica Christiana foi um exemplo de natureza muito fecunda e complexa. Antes do mais, e perante uma obra em que o pluralismo é a marca e em que se torna evidente a característica original não teocrática do cristianismo, importa compreender que clericalismo e anti-clericalismo são irmãos gémeos que, ao longo da vida portuguesa, se alimentaram mutuamente. A moderna historiografia tem, no entanto, procurado distinguir os fenómenos, por se tornar indispensável, como tem insistido o Professor Doutor José Mattoso, reconhecer autonomamente o papel do fenómeno religioso, da Igreja Católica e das suas Ordens e Congregações na afirmação e desenvolvimento da identidade portuguesa, ao lado das outras influências. O esquecimento de alguns aspectos põe em causa o rigor histórico. Não se trata de seguir as explicações providencialistas, mas de nos demarcarmos delas, à luz da moderna ciência histórica e da crítica das fontes, bem como do conhecimento do papel das instituições religiosas na construção de Portugal e na “identificação do País”. E se as instituições religiosas têm grande importância, tal deve-se ao facto delas terem um peso histórico secular indiscutível, sobretudo no período anterior à implantação do constitucionalismo liberal e às decisões posteriores à Convenção de Évora Monte, em 1834.


UMA CLARIFICAÇÃO NECESSÁRIA
Como tem salientado o Professor Manuel Clemente, Bispo do Porto, no estudo do período final da monarquia constitucional e do início da República, não deve alimentar-se uma confusão abusiva entre o papel da Igreja e a questão do regime. Os excessos clericais alimentaram os simétricos excessos de sentido contrário. No entanto, monarquia e catolicismo são diferentes. Estamos longe, felizmente, das polémicas clericais oitocentistas desenvolvidas a partir da historiografia crítica de Alexandre Herculano – mas temos de as conhecer. No longo prazo, a Monarquia Portuguesa e o Poder Real afirmaram-se em matéria de cultos através de um equilíbrio complexo que passou pelas concepções regalistas, pela limitação dos poderes e influência do Alto Clero e da Alta Nobreza, mas também por uma aliança estável e de grande importância com as Ordens Religiosas e com os Concelhos. Não pode falar-se do Municipalismo, de raiz moçarabe, isoladamente, mas deve ter-se em consideração, logo na estratégia do primeiro Rei de Portugal, Afonso Henriques, uma ligação às Ordens religiosas. Poderá o papel estratégico de Coimbra ser entendido sem o reconhecimento da importância dos Cruzios, os Cónegos Regrantes de Santa Cruz, seguidores da Regra de Santo Agostinho e sem a influência de S. Teotónio e do futuro Arcebispo de Braga, D. João Peculiar? E refira-se com especial destaque a personalidade cultural impar de dimensão europeia que foi Fernando Martins, Santo António de Lisboa, resultado de uma riquíssima síntese portuguesa e peninsular, de discípulo dos Cónegos Regrantes de Coimbra e peça indispensável para a renovação teológica e cultural do franciscanismo. E não decorreu a legitimidade da dinastia de Borgonha de uma ligação estável e umbilical com a força beneditina de Cluny? Será possível entender o povoamento e o desenvolvimento económico de Portugal sem o reconhecimento da intervenção dos beneditinos de Cister? Poderá a consolidação do Reino a partir da linha do Tejo entender-se sem a implantação das novas Ordens Militares (Templários, Calatrava, Santiago), na sequência do sucesso das Cruzadas do Ocidente? E como não perceber o fundamental papel desempenhado por D. Dinis na preservação da nova Ordem de Cristo (criada sobre a base dos Templários extintos) e na consideração do novíssimo espírito das Ordens mendicantes, em especial dos Frades Menores de S. Francisco de Assis (que Jaime Cortesão considera cruciais na génese do humanismo universalista dos portugueses)? O mesmo tem de se dizer relativamente à Rainha Santa Isabel de Aragão e ao seu papel na renovação do panorama religioso e cultural de Portugal, na preparação do que virá a ser o Encontro de Culturas dos Descobrimentos?


ENTENDER OS CORPOS INTERMÉDIOS
O humanismo universalista (encontrado no “Leal Conselheiro” e na “Virtuosa Benfeitoria”) não pode ser entendido sem uma leitura política e intelectual, não providencialista, da riquíssima síntese entre a independência de Portugal e a legitimidade espiritual, ligada ao papel complexo das Ordens e Congregações. E poderemos continuar, referindo o desenvolvimento do Padroado, a afirmação da missionação do Oriente, cabendo especial referência à Companhia de Jesus e à figura de S. Francisco Xavier, que em Portugal teve um papel fundamental nas suas deambulações nos confins da Ásia. Mas, em contraponto, é muito curiosa e interessante a influência da Congregação dos Oratorianos de S. Filipe Nery, a partir do século XVII nos meios sociais influentes, em concorrência com os jesuítas. O papel fundamental desempenhado pelo Padre Bartolomeu de Quental merece uma atenção especial, estabelecendo-se uma convergência de preocupações e uma divergência de métodos entre jesuítas e oratorianos, que culminará no tempo de Sebastião José de Carvalho e Melo – que começou por atacar os discípulos de S. Filipe Nery – com a prevalência destes na educação do final do setecentismo. Os elogios formulados por Alexandre Herculano relativamente ao ensino oratoriano servem para deixar clara essa evolução histórica. E o liberalismo oitocentista será tributário dessa renovada mentalidade.


Guilherme d’Oliveira Martins

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