A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

As obras completas de Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941) estão a ser publicadas pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, constituindo uma excelente oportunidade para tomar contacto com um dos melhores prosadores do século XX. Em 2009, saiu o segundo volume, que reúne “Gente Singular” (1909), “Novelas Eróticas” (1935) e “Maria Adelaide” (1938), com Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues e notas do mesmo e de Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Fereira. Estamos perante belos textos que realçam personalidades multifacetadas, lugares de magia cosmopolita, o Algarve que o autor amava e a sensualidade em estado puro…

A VIDA DOS LIVROS
de 19 a 25 de Julho de 2010


As obras completas de Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941) estão a ser publicadas pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, constituindo uma excelente oportunidade para tomar contacto com um dos melhores prosadores do século XX. Em 2009, saiu o segundo volume, que reúne “Gente Singular” (1909), “Novelas Eróticas” (1935) e “Maria Adelaide” (1938), com Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues e notas do mesmo e de Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Fereira. Estamos perante belos textos que realçam personalidades multifacetadas, lugares de magia cosmopolita, o Algarve que o autor amava e a sensualidade em estado puro… 



UM GRANDE ESCRITOR
Manuel Teixeira-Gomes, cujos 150 anos do nascimento passaram há pouco (a 27 de maio), é um escritor incompreensivelmente pouco lembrado. Foi um cidadão do mundo, de vistas largas, de requintado gosto, com um especial talento literário. Foi Presidente da República e singularizou-se por um exigente magistério cívico. Recordá-lo é um dever de elementar justiça. É um caso em que o notável escritor se liga ao diplomata e ao cidadão exemplar. Leia-se a entrevista de Norberto Lopes realizada na Argélia, “O Exilado de Bougie”, e perceba-se a inteligência, a capacidade de entender o mundo e o grande amor a Portugal, a começar pelo seu Algarve. O percurso de vida de Teixeira-Gomes parte de Portimão, passa pelos estudos na cidade onde nasceu, mas também em Coimbra, onde frequenta Medicina e Direito sem os concluir. É o tempo das «reprovações e anos perdidos; peregrinações estéreis pelas várias escolas do país; conflitos com a autoridade paterna; boémia descabelada, miséria, fome e… literatura». Convive com João de Deus, Fialho de Almeida, Sampaio Bruno, Soares dos Reis, João de Barros e António Patrício. O comércio dos frutos secos leva-o à Bélgica, à Holanda e à Alemanha, tornando-o cosmopolita. A seguir à implantação da República é nomeado ministro plenipotenciário em Londres, onde ficará até ao sidonismo, com magníficas provas dadas. Aproxima-se primeiro de Brito Camacho, depois do Partido Republicano e, por fim, do grupo da «Seara Nova». É eleito Presidente da República em 1923 e mantém-se em funções até 1925, momento em que a intriga e a má-língua o levam a renunciar. Mário Soares afirma, com inteira justiça, que «Teixeira-Gomes, personalidade de uma rara elegância cívica e moral, com uma consciência muito realista das dificuldades e carências nacionais, fez todos os esforços ao seu alcance para convencer os políticos dos diferentes partidos a porem-se de acordo sobre uma política de salvação nacional. Em vão!»


«GENTE SINGULAR»
Mas recorde-se o escritor. É em «Gente Singular» (1909) que se encontra a referência mais fiel e rigorosa (no sentido mais incómodo do termo) às vicissitudes que um cidadão do final de oitocentos tinha de penar para chegar à cidade de Faro. Como afirma Urbano Tavares Rodrigues, o cómico e o fantástico combinam-se extraordinariamente nesse conto, integrado na obra com o mesmo título, dedicado a Ricardo Malheiros, que constitui um retrato irónico da província do fim do século XIX. «Duríssima travessia! A linha férrea mal chegava a Beja, onde se tomava a dolorosa diligência de Mértola que, por seu turno transbordava os viajantes num vaporzinho manhoso sobre o qual descia o Guadiana até à foz, e dali, na pombalina Vila Real de Santo António, outra diligência nos joeirava os já desconjuntados ossos pelo decurso das muitas horas necessárias a alcançar Faro». «Calamitosa jornada» é a qualificação com que o escritor nos brinda para dar a imagem de como era dramática essa deslocação, que em alternativa poderia fazer-se por mar, mas que até ao século XX teve normalmente essas conotações inacreditáveis. Tudo isto, muito antes das dramáticas curvas da serra do Caldeirão, com a memória histórica do Remexido, o José do Telhado destas paragens, em fundo. O tal vaporzinho era uma autêntica «frigideira dos passageiros», entre o calor ambiente e as «catódicas labaredas», que pareciam anunciar um incêndio iminente. E havia ainda as «sufocantes nuvens de ardente poeira da estrada algarvia». Numa palavra, tudo era sofrimento. «Cheguei a Faro de noite e batiam ronceiramente as nove no relógio da Sé quando eu tangia a sineta de um imenso portão, em casa apalaçada, aonde me conduzia o portador da minha bagagem, espécie de macrocéfalo a quem indicara o nome do cónego Simas». Diz a tradição que tudo se passaria no Largo do Pé da Cruz (ou Poço dos Cântaros) – mas o autor nunca o confirmou. O quadro era enigmático, o macrocéfalo denotava «insuficiência intelectiva» e a abertura da porta da casa do Monsenhor Romualdo Simas durou uma eternidade, a ponto de visitante e carregador adormecerem em cima do baú, tudo por causa de uns figos lampos, que são melhores quando colhidos à noite. Sucederam-se então inconcebíveis peripécias, dominadas pela escuridão que as lanternas não aclaravam (e recordo o cheiro dos candeeiros da minha infância e as sombras que tudo povoavam). Na casa de jantar escura, onde o viajante foi conduzido, havia um imponente prato de figos lampos, acabados de apanhar, responsáveis (soube-o depois) pela interminável demora na abertura do ferrolho.


UM CONTO TRAGICÓMICO
«Gente Singular» revela-se tragicómica e, a pouco e pouco, percebemos que estamos num manicómio. Para complicar tudo, a chegada do forasteiro coincide com a morte da mãe do cónego, cujo corpo está a ser velado quando chega o viajante. As inconsoláveis três irmãs do clérigo, Sebastiana, Prudência e Faustina, reagem bizarramente e mascaram-se de ursos com trombas de elefante para, dizem, brincar com a defunta, num episódio tétrico e hilariante. E Romualdo revela ao recém-chegado que não consegue adormecer sem o som da chuva, que ali há pouca, pelo que precisava de um maquinismo que «permitia soltar água de um regador sobre umas latas, produzindo o ruído da chuva». A conversa é perturbadora. E tudo se precipita quando Simas duvida da bagagem do hóspede, cuja chave do baú falta, e entra em convulsões ao desconfiar de que lá dentro há um morto ou um vivo. Solução para o conviva? Pôr-se a mexer. «…Atirei-me pela escada abaixo, consegui correr o complicado ferrolho e desatei a fugir pelas ruas de Faro». Ali não poderia ficar. E encontrou felizmente uma hospedaria para descansar e fugir da loucura em que caíra. Mas ficou confuso e perturbado com tudo o que presenciara. O «levante» («afrontoso vento cujo efeito nos forasteiros é deplorável») parecia ter efeitos maléficos, como fonte de melancolias e outras enfermidades. Mas o andar do tempo pareceu sarar as mentes. Pelo menos assim pareceu. A visita às ruínas de Milreu e a S. Brás, o contacto com a ria e o mar – tudo contribuiu para a reconciliação com o lugar e até com o cónego. Mas eis que tudo termina numa rematada loucura, com a misteriosa inauguração de uma retrete que custou trezentos mil réis. O muito idoso Vigário Geral é convidado e forçado a abrir o melhoramento em casa do Monsenhor e das suas impagáveis irmãs. Mas estas tiveram receio que o luxo não fosse suficientemente apreciado e administraram ao Vigário uma dose razoável de tártaro emético, indicada pelo boticário. Resultado? O efeito superou todas as expectativas e o Vigário ficou às portas da morte. E não houve comiserações, mas uma estranha sensação de facécia conseguida… «Subtilíssima dosagem de instinto e inteligência, de sensualismo e de humor, de plenitude física e de bom gosto cultural, não encontra paralelo em toda a literatura portuguesa» – David Mourão-Ferreira dixit.


Guilherme d’Oliveira Martins



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