A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

O “Dicionário de Dúvidas, Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa” de Edite Estrela, Maria Almira Soares e Maria José Leitão (D. Quixote, 2010) é um instrumento utilíssimo para todos, em especial para quem ensina e para quem tem de comunicar com os outros, uma vez que explica, de modo muito acessível, correcto e actual, como deve falar-se português para que as mensagens sejam claras, rigorosas e compreensíveis. Não podemos esquecer que, afinal, falar bem português não é questão de gramáticos ou de especialistas da língua, mas de todos sem excepção. Usar bem uma língua é um acto elementar de cidadania e de respeito. E se falo de respeito refiro-o relativamente aos outros, mas também em relação ao valor cultural da língua em si, como património imaterial comum. Se devemos prezar e preservar as “ideias claras e distintas”, também temos de cultivar bem a língua e as línguas, para que a comunicação se faça e para que a compreensão e a clareza ocupem o lugar da incompreensão e da confusão – que são o húmus da ignorância.

A VIDA DOS LIVROS
de 17 a 23 de Maio de 2010


O “Dicionário de Dúvidas, Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa” de Edite Estrela, Maria Almira Soares e Maria José Leitão (D. Quixote, 2010) é um instrumento utilíssimo para todos, em especial para quem ensina e para quem tem de comunicar com os outros, uma vez que explica, de modo muito acessível, correcto e actual, como deve falar-se português para que as mensagens sejam claras, rigorosas e compreensíveis. Não podemos esquecer que, afinal, falar bem português não é questão de gramáticos ou de especialistas da língua, mas de todos sem excepção. Usar bem uma língua é um acto elementar de cidadania e de respeito. E se falo de respeito refiro-o relativamente aos outros, mas também em relação ao valor cultural da língua em si, como património imaterial comum. Se devemos prezar e preservar as “ideias claras e distintas”, também temos de cultivar bem a língua e as línguas, para que a comunicação se faça e para que a compreensão e a clareza ocupem o lugar da incompreensão e da confusão – que são o húmus da ignorância.


 
Lema do Infante D. Henrique, Crónica dos Feitos da Guiné (Paris).


USAR A LÍNGUA E TRANSFORMÁ-LA
“Usar a língua é transformá-la (dizem as autoras) e este processo de transformação, como bem sabemos, não tem paragem. É lícito, porém, que sintamos a responsabilidade de observar, de estudar as práticas dos falantes e, confrontadas com as suas dificuldades, dúvidas, problemas actuais, queiramos contribuir para evitar o erro, fornecendo os elementos necessários a uma melhor compreensão do correcto uso da língua”. Se é verdade que há uma evolução e o desenvolvimento de novas formas e mutações das línguas, não é menos certo que se suscitam a cada passo dúvidas, incertezas, dificuldades e não raramente erros. A criatividade obriga a um confronto permanente com as regras e com a razão de ser desta ou daquela solução verbal. Importa, por isso, que haja orientações claras, que só se adquirem plenamente pela experiência e pela leitura reiterada de textos de grandes autores. Não se trata, pois, de limitar de qualquer modo a criatividade de uma língua viva (falada por duzentos milhões de pessoas, vinda do «papear cristã”, língua franca dos séculos XVI e XVII), mas sim de cuidar do rigor necessário e da clareza indispensável a que a inovação não fragilize a língua. João Guimarães Rosa é um excelente exemplo, de quem soube preservar o rigor essencial da língua, juntando-lhe o colorido regionalista e a inteligência da palavra oportuna e pertinente, que torna o pensamento mais rico e pitoresco. Aquilino Ribeiro em “Malhadinhas” ou, no nosso tempo, Lídia Jorge e o seu “O Dia dos Prodígios” são outros exemplos da língua viva que segue a riqueza popular, sem perder a clareza e a correcção. Nesta obra, estamos perante um “corpus” “que abrange dúvidas prementes, problemas significativos, frequentemente testemunhados, dando ampla cobertura às dificuldades dos falantes”. As autoras optaram, e bem, por um registo pedagógico acessível, útil para o falante comum, mas também para quem tenha preocupações mais exigentes. Lembramo-nos bem do ensino do Padre Raul Machado (“Charlas Linguísticas”) e de José Pedro Machado, mas encontramos nesta obra uma preocupação mais prática, que não diminui em nada o seu valor, antes considera um número mais vasto de leitores.


ALGUNS EXEMPLOS
Para ilustrar o que dizemos, vamos dar alguns exemplos, que servem de alerta relativamente a erros comuns, designadamente nos meios de comunicação social. Comecemos pela palavra acordo. É muito comum vermos pessoas com especiais responsabilidades pronunciar incorrectamente a palavra no plural. Ora, acordo mantém, no plural, o timbre fechado do o tónico (ô) que já tinha no singular: acordo (ô), acordos (ô). “Esta não é, no entanto, a regra geral da formação do plural dos substantivos cuja vogal tónica é o fechado”. A regra geral é o plural com o aberto – despojo (ô), despojos (ó); jogo (ô), jogos (ó). Mas há excepções como: adorno (ô), adornos (ô); esgotos (ô), esgotos (ô); molho (ô), molhos (ô) – neste caso trata-se da calda da culinária, que não deve confundir-se com o feixe – molho (ó), molhos (ó), que segue a regra geral, acrescentando-se um s. Quanto à acentuação, é fácil ouvir-se a má pronúncia de alcoolemia, que é uma palavra grave como glicemia, democracia ou septicemia, o sufixo -ia é tónico. É muito comum ainda a confusão entre os verbos aprazar (definir um prazo) e aprazer (dar prazer). O primeiro é um verbo regular da primeira conjugação, o segundo é da segunda conjugação e apresenta algumas formas irregulares (apraz, aprouve, aprouvesse, aprouvera, aprouver, aprouvesse). A primeira pessoa do singular do presente do indicativo segue, no entanto, uma forma regular – aprazo… Outro erro comum liga-se à palavra bem-vindo, que se deve escrever correctamente com hífen, como bem-criado ou bem-parecido. Se a fórmula de saudação tem o hífen, apenas o onomástico Benvindo constitui uma palavra só. O verbo haver suscita pecados mortais e pecados veniais. Quanto aos veniais, é errado dizer “há dois anos atrás”. Atrás está a mais e é pleonástico, é inútil. Mas há pecados mortais pelo não uso das formas hão-de e hás-de (hádem ou há-des são erros grosseiros, de bradar aos céus). Segundo o Acordo Ortográfico as palavras referidas passam a grafar-se sem hífen, como hão de e hás de. Lembre-se ainda que o verbo haver, no sentido de haver, e não de ter, não se conjuga no plural. A palavra carácter (como característica de pessoas ou coisas, como um sinal ou elemento de um sistema de escrita ou como tipo móvel de imprensa) tem sempre como plural caracteres, palavra grave. Os adjectivos eminente e iminente aparecem por vezes confundidos, – no entanto eminente significa o que está acima ou em destaque, e iminente é o que está pendente e quase a acontecer. Já os particípios entregado e entregue não se utilizam indiferentemente, a forma regular é entregado e a irregular é entregue – o uso correcto é: “o carteiro tinha entregado a correspondência, a correspondência foi entregue pelo carteiro”. O mesmo se diga com ganhado e ganho, diz-se “fulano tinha ganhado o jogo” e “o jogo foi ganho por sicrano”. E sabia que estada é o acto de estar, enquanto estadia é a demora de um navio no porto (isto, apesar dos Dicionários terem-se tornado complacentes quanto ao uso das duas palavras)? O verbo intervir tem-se tornado, estranhamente um quebra-cabeças. No entanto, “conjuga-se como vir, mas com acento agudo na segunda e terceira pessoas do singular do presente do indicativo e as mesmas formas usadas com valor de imperativo: intervéns, intervém, etc. (presente do indicativo); intervém (imperativo). Note-se que o particípio passado e o gerúndio deste verbo têm a mesma forma: intervindo. Além de intervir, são derivados de vir os verbos advir, convir, desconvir, entrevir, provir, sobrevir. São erros muito graves e inaceitáveis: interviu e intervi. Entre maciço e massivo deve preferir-se o primeiro termo (substantivo, como conjunto de relevos montanhosos, e adjectivo para significar compacto), o galicismo é desnecessário. A palavra media usada com o significado de meios de comunicação de massas vem do inglês, mas é na verdade um latinismo, por isso deve ler-se como média (plural latino de medium), nunca como mídia, devendo grafar-se em itálico e sem acento gráfico (também a palavra bus é de origem latina, vem de omnibus, e deve ler-se como se escreve). Por vezes há casos que pensamos serem erros e não são, no verbo negociar podemos usar a forma regular negocio (presente do indicativo) ou negoceio – Celso Cunha e Lindley Cintra dizem: “há um grupo de verbos em –iar que (…) não seguem uma norma fixa, antes vacilam entre os modelos de anunciar e incendiar” (agenciar, comerciar, obsequiar, sentenciar). Quanto às palavras obcecação e obsessão podem ser usadas como sinónimas, mas escrevem-se diferentemente e têm origens etimológicas diferentes (cegueira no primeiro caso, tendência atormentada no segundo). Ouvimos, muitas vezes, o uso da palavra perca como sinónimo de perda – é um erro, uma vez que perca é um “peixe das águas fluviais”. A palavra personagem é um substantivo do género feminino tal como a generalidade das palavras portuguesas terminadas em –agem. O verbo reaver deriva de haver, pelo que se conjuga como este, o pretérito perfeito é pois: reouve, reouveste, reouve… Seguindo a regra geral, a palavra social-democrata faz o plural social-democratas. Suponhamos (palavra grave) é a primeira pessoa do plural do presente do conjuntivo do verbo supor e suscita erros incompreensíveis. Como estes, muitos outros exemplos poderíamos dar. Para já fica o conselho – tenham este livro sempre à mão, não vá o diabo tecê-las. 


Guilherme d’Oliveira Martins

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