A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“A Luz Fraterna – Poesia Reunida” de António Osório (Assírio e Alvim, 2009), com prefácio de Eugénio Lisboa, é uma obra de arte, como aquelas a que o editor, Manuel Rosa, nos tem habituado. Na capa deparamos com um extraordinário “Contraluz”, de Miguel Ângelo Lupi, óleo sobre tela de 1875, pintura que acompanha o poeta, como referência familiar, e que revela um dos melhores pintores portugueses do século XIX. Uma janela sobre o jardim deixa entrar os raios de sol de um dia glorioso, as rendas dos cortinados esvoaçam e, em primeiro plano está Teresa Júlia (o “Amor de Miguel Ângelo Lupi”), “derradeiro modelo (…) / ela dardejando a integração primaveril…”. E, como disse Fernando J.B.Martinho, na apresentação do livro, não é possível compreender António Osório sem essa ligação intrínseca à “Felicidade da Pintura”

A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de Outubro de 2009.



“A Luz Fraterna – Poesia Reunida” de António Osório (Assírio e Alvim, 2009), com prefácio de Eugénio Lisboa, é uma obra de arte, como aquelas a que o editor, Manuel Rosa, nos tem habituado. Na capa deparamos com um extraordinário “Contraluz”, de Miguel Ângelo Lupi, óleo sobre tela de 1875, pintura que acompanha o poeta, como referência familiar, e que revela um dos melhores pintores portugueses do século XIX. Uma janela sobre o jardim deixa entrar os raios de sol de um dia glorioso, as rendas dos cortinados esvoaçam e, em primeiro plano está Teresa Júlia (o “Amor de Miguel Ângelo Lupi”), “derradeiro modelo (…) / ela dardejando a integração primaveril…”. E, como disse Fernando J.B.Martinho, na apresentação do livro, não é possível compreender António Osório sem essa ligação intrínseca à “Felicidade da Pintura”.


 


UM POETA DO RIGOR E DA “PIETAS”. – Muito se tem dito e escrito sobre a fecunda obra de António Osório, mas o título que foi escolhido para esta reunião de poesia é de uma rara felicidade, pois define bem a alma de quem é, entre nós, uma voz única, pelo modo como aborda a realidade que o cerca, como um denodado artífice, que cinzela a palavra com gosto e afecto indiscutíveis. Como José Manuel de Vasconcelos disse há na poesia de António Osório uma presença permanente de luz e de luminosidade. Por isso, a escolha da capa é uma demonstração de que sem essa luz não é possível entender a força das palavras e das ideias. E para quantos insistem em referir a influência da poesia italiana e dos poetas italianos no autor de “A Raiz Afectuosa”, a verdade é que, mais do que dos poetas italianos (Dante, Quasímodo, Saba, Montale, Ungaretti…), o que se sente é a memória de Florença e o ritmo da língua da mãe italiana. É o cantar florentino, a cada passo, como reminiscência idílica de San Miniato al Monte. “Desde menino me obrigaste / a falar a tua língua. / Itália, religião tua, depois / minha. / Mãe que por bem / me destroçaste ficando / sem pátria nenhuma”. Contudo, em falando de poesia, não podemos esquecer a influência paterna, camoniana, clássica, obstinadamente medida. E além de Camões, Pessanha e Cesário, e depois Torga, Sophia… Ao lado da luminosidade, há, assim, a fraternidade, próxima e familiar, imanente e franciscana. O poeta não teme expor as suas relações familiares, heterogéneas, por vezes dolorosas e difíceis, mas a maior parte das vezes ternas. “A teu lado estou / sorrindo a chamar-te, / espero que regresses a casa, / ansiosamente corro para a porta. // E ao colo sinto o teu calor, contigo passeio pela mão, / pergunto, pergunto e tu respondes / ocultando o fim da vida”. Fernando J.B.Martinho diz-nos que Deus se sente mais na poesia de Osório como imanência do que como transcendência (“Nascido antes de Cristo / uma vez mais floriu / o velho e agora jovem mirto”). Daí o ser poeta da “pietas”, da piedade e da ligação fraternal. De facto assim é. Dir-se-ia que é Frei Agostinho da Cruz que se manifesta desse modo, entre urzes e medronheiros, na mata sagrada da Arrábida, omnipresente serra-mãe. Mas o poeta nunca esquece o ofício do artífice, ele, o advogado que aprendeu a pesar palavra a palavra, mas que tanto admira os calceteiros (“Escrevem na rua: / juntam / cuidadosamente / palavras”). E, tantas vezes, ouvimos as palavras do poeta com um nó na garganta de emoção, sentindo o que só os melhores poetas são capazes de transmitir. É o que acontece em “Como um pombo do Piazzale Michelangelo”. Aí, além do sentido cinematográfico, que é evidente, há uma tensão poética de forte intensidade, que nos toca intimamente. Dir-se-ia que partimos da imanência em busca da transcendência (“Procuro chegar ao telhado, / à destruída casa de teus pais”). O ponto mais alto do Campanbile de Giotto, os sinos que percorrem Fiesole, Leonardo a dar asas às aves do Mercato de San Lorenzo, Dante, Donatello – as línguas portuguesa e italiana misturam-se nos nomes e nos lugares. A luz fraterna invade o poema. É clara, terna, calorosa: “… à espera que uma persiana se abra / e encontre, Mãe, um rosto que lembre o teu / e onde nessa mão eu chegue e coma”. Nada está a mais ou a menos – a música, a pintura, a arquitectura, a língua, a cidade, o rio, a memória e o mistério… E Montale tem razão: a poesia, “la più discreta delle arti”.

A PRESENÇA PERMANENTE DOS CLÁSSICOS. – O poeta embrenha-se na busca da sabedoria ensinada por Bashô, que não seguia o caminho dos antigos, mas buscava o que eles buscavam. E nessa busca estão raízes fundas e escondidas. Entre a recordação das letras portuguesas, por via paterna, e a musicalidade italiana, da poesia maternal, fica um território largo para o Mediterrâneo e as suas influências. Afinal, António Osório é, como a Arrábida de Orlando Ribeiro, a ligação permanente e intrínseca do Atlântico e do Mediterrâneo. E por isso Ulisses está bem presente na peregrinação de regresso a Ítaca, mas, mais do que isso, na sua memória da Guerra de Tróia, paradigma dos combates humanos e da criação da complexa, mas apaixonante, Europa. Heitor, bem o sabemos, é a grande referência de António Osório. Sabemos do seu desgosto quando ouviu pela primeira vez a “Ilíada” e como achou injusto que Aquiles levasse de vencida o seu leal antagonista: “Heitor, o herói vencido. / Nada alteraria / o rumo da lança, / nem o pranto de Andrómaca, / no seio depois / enterrando-lhe a nuca. / Odiava a guerra / e era, não obstante, implacável / quando esclarecido e meigo”. Na “décima aurora”, nenhum humano “foi mais dignamente chorado”. A História reserva-nos, afinal, desfechos misteriosos, tantas vezes incompreensíveis. Cabe aos poetas a revelação de como a aparência é, a maior parte das vezes, triste ilusão, “queimando vivo o seu fantasma”. E, a cada passo, António Osório reserva-nos, a nós seus leitores, a cumplicidade nessa procura dos sentidos obscuros e inefáveis. “Porque há um sentido / no lírio, incensar-se; / e no choupo, erguer-se; e na urze arborescente, / ampliar-se; / e no cobre, primeira cura, / que dou à vinha, / procriar-se”.

A IMPORTÂNCIA DOS AFORISMOS. – José Bergamin está presente, como sombra tutelar, na poesia de António Osório e no uso do método aforístico. “El toro no piensa; da que pensar”. É o Mediterrâneo contraditório que se manifesta. O poeta espanhol quando criou a sua revista “Cruz y Raya” fê-lo pondo na capa os símbolos desse misterioso título, a cruz com o sinal de somar, e “raya” com a marca da subtracção. Mais e menos, afirmação e negação. Compreende-se que para António Osório Bergamin seja referência. “D. Quixote e os Touros” é, assim, a expressão de uma permanente contradição entre a valentia e a barbárie. “Deus não assiste, em regra, às corridas de touros; quando assiste castiga, pelo menos, com a enfermaria”. E como marca da contradição, diz António Osório: «José Bergamín, grande poeta e ensaísta, confidente de matadores, embora considere o toureio um jogo ‘criador, poético’, verberou várias espécies de ‘pornografia mortal’ da corrida, sobretudo a outorga dos apêndices do touro abatido ‘reminiscencia espantosa de las peores luchas humanas’». E aqui entra D. Quixote, “o drama cómico da loucura – de uma loucura turbulenta e generosa. Se a loucura do diestro não se mostra desastrada ou grotesca, não deixa de ser exorbitante e insensata de todo, e por aí rematadamente quixotesca”. E Bergamín fala da metáfora da morte e de um “destino, que não é justamente o de morrer, mas o de viver, vencendo – com as suas luzes de inteligência ou entendimento ou razão, imortais…”. Porém, a arte do aforista é estranha e bizarra. Cultiva o paradoxo, para enaltecer o senso comum. Parte da contradição para encontrar a coerência. “Com desplante, o aforismo escolhe os terrenos mais perigosos, para ligar a sua lide – de redondos circulares – entre a vida e a morte”. Estamos, afinal, sempre no fio da navalha ou no trapézio sem rede. “Do ponto de vista das abelhas, encontra-se em permanente estado de graça o colmeeiro”… E António Osório acolhe-nos no seu jardim mágico.


E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença


Guilherme d’Oliveira Martins

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