A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Vingt-Huit Siècles d’Europe” de Denis de Rougemont (reed. Bartillat, 1990) é uma obra de referência sobre a história da ideia moderna de Europa. Na semana em que terá lugar o referendo na Irlanda sobre o Tratado de Lisboa é útil e necessário recordar este conjunto de textos e reflexões, organizados por um dos intelectuais que mais contribuiu para a criação da moderna ideia de Europa. A partir da procura das raízes e fundamentos da cultura europeia, podemos perceber que há um longo caminho para trilhar e aprofundar – uma vez que um projecto comum de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural é cada vez mais exigente e indispensável, sobretudo perante os ventos de crise com que nos debatemos.

 

A VIDA DOS LIVROS
de 28 de Setembro a 4 de Outubro de 2009


“Vingt-Huit Siècles d’Europe” de Denis de Rougemont (reed. Bartillat, 1990) é uma obra de referência sobre a história da ideia moderna de Europa. Na semana em que terá lugar o referendo na Irlanda sobre o Tratado de Lisboa é útil e necessário recordar este conjunto de textos e reflexões, organizados por um dos intelectuais que mais contribuiu para a criação da moderna ideia de Europa. A partir da procura das raízes e fundamentos da cultura europeia, podemos perceber que há um longo caminho para trilhar e aprofundar – uma vez que um projecto comum de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural é cada vez mais exigente e indispensável, sobretudo perante os ventos de crise com que nos debatemos.



UM SÉCULO TRÁGICO
Quando, no início do século XX, havia quem tomasse como real um desejo de paz e entendimento para a Europa, quase todos estavam longe de suspeitar aquilo que viria a passar-se efectivamente. Ao contrário do que pensavam os bem intencionados e os ingénuos, e confirmando as piores suspeitas e medos de Stefan Zweig, a tragédia tornou-se inevitável, contrariando quer aqueles que pensavam que a cumplicidade entre as casas reinantes funcionaria positivamente a favor do entendimento, quer os que acreditavam em que o internacionalismo proletário poderia impedir um conflito generalizado. Depois da ilusão da “Primavera dos Povos” (1848), após a corrida ao poder colonial em África, perante o desenvolvimento da segunda revolução industrial (desde a emergência dos mercados globais até à influência da economia da energia), o que aconteceu foi a fragmentação europeia e o artificialismo dos acordos de 1919, que puseram termo muito provisório à primeira guerra mundial. As nacionalidades constitucionais oitocentistas, em lugar de terem dado lugar à lógica liberal, criaram condições para os proteccionismos e para os nacionalismos egoístas e agressivos. A guerra de 1939-45 foi, afinal, o resultado da falta de solução durável obtida após o conflito de 1914-18. Além do mais, a humilhação sofrida pelas potências vencidas só veio a criar condições para que ocorresse uma mistura explosiva no decurso dos anos trinta. Os acordos de Munique de 1938, longe de terem aberto condições para a paz, apenas deram tempo a Hitler para que organizasse melhor a ofensiva do “eixo” no mundo. Bernard Voyenne chamaria, assim, ao ditador o Carlos Magno Nietzschiano, enquanto símbolo não de uma partilha europeia, mas de uma rendição sem condições. Daí que as poucas vozes que se levantaram contra o optimismo ingénuo de Chamberlain, prevendo o que ocorreria até Setembro de 1939 (há exactamente setenta anos), tenham considerado esses acordos, sobre a Checoslováquia, como a mais grave e terrível das cedências.


NADA COMO DANTES DEPOIS DE 1945
Sabemos o que aconteceu até 1945. O prometido império para mil anos tornou-se símbolo hediondo das causas mais desumanas – desde o preço em vidas humanas da guerra até aos efeitos tremendos da “solução final”. A moderna ideia de Europa só pode ser compreendida, assim, se seguirmos os acontecimentos do último século e meio: guerra franco-prussiana, proclamação do Império Alemão em Versalhes, decadência dos impérios Austro-húngaro e Otomano, arrastamento do conflito mundial iniciado em 1914, revolução russa de 1917, humilhação alemã de 1919, efeitos económicos da guerra (hiper-inflação alemã de 1923, depressão e desemprego), guerra civil espanhola, ofensiva do “eixo”, efeito vitorioso da dinâmica aliada, Plano Marshall, guerra fria… Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal: haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo, depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950) consagrou no plano político o objectivo defendido pelos intelectuais na capital holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont, empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade (na linha de Althusius). As pessoas e os cidadãos deveriam, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspectiva nacional e nos egoísmos agressivos ou proteccionistas, mas na procura de uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se trataria, pois, de criar um Super Estado Europeu nem uma nação europeia, mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas complementaridades, numa palavra, na unidade na diversidade. Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização ou da uniformidade, mas sim de uma unidade nas diferenças.


UMA UNIDADE POLÍTICA BASEADA NA LIBERDADE
Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro e necessário do projecto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também sérias dificuldades”. Mas o historiador lança os alertas necessários, uma vez que a construção europeia depressa se tornou menos um projecto político de cidadania, para se ficar por uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias. “É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas vivas da fé religiosa. Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está por formular”. Assim, hoje, mais do que invocarmos os grandes idealistas, somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E esse salto tem de se chamar cidadania europeia ou Respublica Europeana. É preciso menos palavras e melhor definição de interesses e valores comuns (deeds not words, res non verba). É preciso mais iniciativas da sociedade civil europeia. É preciso mais ligação entre a legitimidade dos Estados e a legitimidade dos cidadãos. E quando recordamos figuras como Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli, não podemos esquecer os funcionalistas (como Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados de Direito e Uniões de Direito. Rougemont tem razão quando fala de regiões europeias (porque há que considerar as diferenças entre Estados e nações), mas também tem razão ao dizer que Portugal é um Estado-nação perfeito (sendo a um tempo nação e região europeia). Longe da tentação de construir instituições políticas artificiais (que se tornam perigosamente reversíveis), do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um tempo, grandes e pequenos de mais). Daí a insistência de Rougemont na história das regiões europeias, não como abstracção, mas como expressão da subsidiariedade. No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu Alexandre Marc, um militante europeu centrado liberdade e na dignidade humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças. E, hoje, depois de 1989, com a Europa aberta e de fronteiras incertas é tempo de compreender que haverá vários círculos concêntricos, que partem das pessoas e das regiões, mas que devem entender uma “unidade não unitária”, assente em vinte línguas e uma literatura e em valores comuns, baseados na unidade e na diversidade (pessoa, gosto risco, procura da originalidade). É com base nesta comunidade de cultura, que pré-existe aos Estados, que os europeus devem construir a sua união…


Guilherme d’Oliveira Martins

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