A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«El Camino Hacia la Democracia – Escritos en ‘Cuadernos para el Diálogo’ (1963-1976)» de Joaquin Ruiz-Giménez (numa edição do Centro de Estúdios Constitucionales de Madrid, 1985) é um documento de época. Tal como ocorreu em Portugal com António Alçada Baptista, verificamos no percurso da influente revista “Cuadernos para El Diálogo” uma projecção política decisiva do Concílio Vaticano II e, em especial, do Cardeal Roncalli, o Papa João XXIII. O espírito da encíclica profética “Pacem in Terris” e os ensinamentos da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” estão, de facto, aqui bem evidenciados. E, ao longo destes textos descobrimos o esforço empenhado de um destacado intelectual católico espanhol, professor de Filosofia do Direito, que a partir dos anos cinquenta se envolveu activamente na missão difícil e ingrata de mobilização cívica com vista a uma transição pacífica para a democracia, numa sociedade com feridas ainda abertas pela tragédia da Guerra Civil de 1936 a 1939.


A VIDA DOS LIVROS
De 7 a 13 de Setembro de 2009


«El Camino Hacia la Democracia – Escritos en ‘Cuadernos para el Diálogo’ (1963-1976)» de Joaquin Ruiz-Giménez (numa edição do Centro de Estúdios Constitucionales de Madrid, 1985) é um documento de época. Tal como ocorreu em Portugal com António Alçada Baptista, verificamos no percurso da influente revista “Cuadernos para El Diálogo” uma projecção política decisiva do Concílio Vaticano II e, em especial, do Cardeal Roncalli, o Papa João XXIII. O espírito da encíclica profética “Pacem in Terris” e os ensinamentos da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” estão, de facto, aqui bem evidenciados. E, ao longo destes textos descobrimos o esforço empenhado de um destacado intelectual católico espanhol, professor de Filosofia do Direito, que a partir dos anos cinquenta se envolveu activamente na missão difícil e ingrata de mobilização cívica com vista a uma transição pacífica para a democracia, numa sociedade com feridas ainda abertas pela tragédia da Guerra Civil de 1936 a 1939.



UM MESTRE SERENO
Com o desaparecimento de Joaquin Ruiz-Giménez (1913-2009), ocorrido há pouco, fecha-se um tempo da história das ideias políticas na Península. Para os mais novos o nome já não diz muito, no entanto, trata-se do fundador, no ano de 1963, dos “Cuadernos para el Dialogo”, a revista que, ao lado de “O Tempo e o Modo” (criada no mesmo ano), foi um instrumento fundamental para obter novos apoios para a democracia, rompendo com a frente nacionalista que constituía a base do franquismo. Ruiz-Giménez foi, já na democracia, o primeiro Defensor del Pueblo em Espanha, marcando com o seu exemplo de inteireza e hombridade essa instituição. Por estes dias, alguns dos textos que se publicaram sobre ele disseram (tal como aconteceu relativamente ao seu amigo Alçada Baptista) que o projecto político de um cristianismo social avançado, dialogante, inconformista não vingou. É verdade. O velho professor chamou-lhe Esquerda Democrática, mas na galáxia do compromisso dos cristãos com a democracia não teve sucesso. No entanto, se lermos os dois volumes riquíssimos de “El Caminho Hacia la Democracia”, onde estão reunidos textos publicados de 1963 a 1976, depressa compreendemos que Don Joaquin, o respeitado professor de Filosofia do Direito, que acreditou sinceramente na transição pacífica espanhola, foi sobretudo um pedagogo da democracia, talvez com razão antes do tempo, ao propor o método de uma Plataforma de Convergência. E é sempre necessário que haja alguém, arrostando com as incompreensões, disponível para abrir veredas. E assim aconteceu com Ruiz-Giménez. Ao lado de Gil-Robles, de Dionísio Ridruejo e de Tieno Galván, tornou-se, desde o final dos anos cinquenta, uma presença assídua nos contactos ibéricos entre democratas. O Centro Nacional de Cultura foi um dos lugares dessas aproximações e o espírito dos “Cuadernos para el Dialogo” assemelhou-se ao da “aventura da Moraes”, na senda de José Bergamín e da revista “Cruz y Raya”, dos republicanos cristãos dos anos trinta. Num depoimento muito sentido, por ocasião do falecimento do professor, Elías Díaz salientou o seu cristianismo aberto, longe de uma lógica limitada e teocrática, a sua influência cultural, em nome do pluralismo e da democracia e, por fim, o seu labor científico e filosófico a favor das liberdades públicas, dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. “Foi um homem de princípios, de convicções fortes, um cristão cada vez mais kantiano, que respeitava muito séria e sinceramente a consciência” (El País, 28.8.09). Outro dos seus alunos, hoje uma das vozes mais respeitadas no panorama político e académico, Gregório Peces-Barba, preferiu falar de “um sonhador para o povo”. No número de Outubro de 1963, don Joaquin dizia: “Nascem estes simples ‘Cuadernos para el Diálogo’ com o honrado propósito de facilitar a comunicação de ideias e de sentimentos entre homens de distintas gerações, crenças e atitudes vitais, em torno de realidades concretas e de incitantes problemas religiosos, culturais, económicos, sociais, políticos… da nossa instável conjuntura história”. E, falando no mesmo número do pecado do silêncio afirmava: “a responsabilidade atinge-nos a todos. Se calamos, se calam, algum dia falarão as pedras. E aquele pecado contra o Espírito, aquele que não tinha perdão, era um pecado contra a verdade”.


UMA VOZ PROFÉTICA
O professor de voz pausada e serena, mas com uma forte determinação de vontade, foi especialmente importante na abertura democrática, possuindo a autoridade de ter participado nos trabalhos do Concílio Vaticano II, como perito no debate do Esquema XIII, que se tornaria a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”. Justiça social e desenvolvimento tinham de estar a par, e esse era o ponto de vista de Ruiz-Giménez, aprofundando uma nova perspectiva de direitos fundamentais, centrados na dignidade da pessoa humana e na ligação desta ao moderno desenvolvimento económico, social e cultural sustentável. E foi, como se disse, a influência da personalidade de João XXIII que mudou o curso de vida do filósofo (falava, por isso, de um certo encontro na estrada de Damasco). Fora Ministro da Educação durante o franquismo (1951-1956), depois de ter exercido funções de Embaixador junto da Santa Sé, num momento em que os contactos com Jacques Maritain, Embaixador de França, lhe abriram novas perspectivas no sentido da democracia. Ainda tentou acelerar a transição, em especial pela chamada à Universidade de personalidades que estavam afastadas por motivos políticos. Sem sucesso. E o certo é que gostava de citar António Machado: “Para dialogar, / perguntai primeiro, / depois, escutai” ou “Busca o teu complemento, / que anda sempre contigo / e costuma ser o teu contrário”. Num tempo em que o diálogo parece cair, infelizmente, em desuso, Don Joaquin fez dele a sua bandeira. Muitos não o ouviram.


LÁGRIMAS DE CROCODILO DOS FARISEUS
Houve muitas lágrimas de crocodilo derramadas por aqueles que os “Cuadernos”, pela pena do seu director, consideraram ser os novos fariseus: «Porque fariseus são os cidadãos que vegetam na ‘dolce vita’ burguesa insensíveis à dor dos camponeses ou dos operários das cidades, incapazes de permanecer algum tempo nos subúrbios, de compartilhar angústias e dificuldades, e que logo, perante qualquer agitação social, se lamentam da rebelião dos oprimidos e clamam contra os agitadores comunistas e os seus companheiros de viagem. Fariseus são os políticos que proclamam a sua fidelidade às normas tradicionais do Direito público cristão, mas procuram lançar cinza sobre a chama acesa pelas declarações da ‘Pacem in Terris’» (Março de 1965). Clamar pelo diálogo era perigoso. Havia todo o tipo de desconfianças e temores. Mas o diálogo não morre, não pode morrer “porque é um segredo da imortalidade da Igreja de Cristo e da sua missão decisiva e irrenunciável nesta hora angustiada e expectante do mundo. Quem tenha ouvidos para ouvir, que oiça; quem tenha coração para sentir, que sinta; quem tenha amor para dialogar, que dialogue E se por dialogar há que sofrer incompreensões, injúrias, assaltos, até a morte, tanto melhor, porque nenhuma vitória do espírito se conseguiu sem aceitar a cruz” (Abril de 1965). Por isso, os “Cuadernos” foram um lugar plural de encontro, onde se ia dizendo nas entrelinhas o que não podia dizer-se abertamente, onde se abriu lugar aos povos da periferia e às autonomias e onde se pôs na ordem do dia a necessidade de abertura política (expressa, por exemplo, num diálogo pioneiro entre cristãos e marxistas). Além de tudo o mais, Ruiz-Giménez foi sempre um amigo de Portugal, crendo sinceramente que o destino dos dois Estados estaria ligado intimamente, por muito diferentes que fossem as circunstâncias. Teve razão. E podemos ainda lembrar o que deixou escrito aquando da morte do “seu” querido Papa: “Morte, onde está a tua vitória?” – disse o salmista. “Assim, a morte de João XXIII é e continuará a ser para sempre um consolador manancial de água viva”.  


Guilherme d’Oliveira Martins

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