A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Leszec Kolakowski (1927-2009) é um dos autores do século XX cuja obra crítica se confunde com os acontecimentos que viveu e em que participou. Ao escrever “Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution” (Oxford University Press, 1978; vol. 1, The Founders, vol. 2, The Golden Age; vol. 3, The Breakdown) procedeu a uma análise brilhante e serena que nos permite compreender como a teoria marxista nasceu e se desenvolveu, até ao colapso, que já se anunciava em 1978, dez anos antes da queda do muro de Berlim (no mesmo ano em que o Cardeal Karol Wojtila foi eleito Papa, com os efeitos conhecidos). Para o filósofo havia contradições internas e pressupostos insanáveis na teoria formulada por Karl Marx que foram acentuadas no modo como foram pensadas e postas em prática, em especial a partir da Revolução Russa de 1917. Nascido na Polónia, entusiasmado num primeiro momento por Marx, cedo pôde perceber que a liberdade crítica entrava em choque com a ideia de construir um homem novo. Por isso, teve de sair do seu País e foi acolhido na Universidade de Oxford, onde exerceu o seu magistério.

A VIDA DOS LIVROS
De 31 de Agosto  a 7 de Setembro de 2009


Leszec Kolakowski (1927-2009) é um dos autores do século XX cuja obra crítica se confunde com os acontecimentos que viveu e em que participou. Ao escrever “Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution” (Oxford University Press, 1978; vol. 1, The Founders, vol. 2, The Golden Age; vol. 3, The Breakdown) procedeu a uma análise brilhante e serena que nos permite compreender como a teoria marxista nasceu e se desenvolveu, até ao colapso, que já se anunciava em 1978, dez anos antes da queda do muro de Berlim (no mesmo ano em que o Cardeal Karol Wojtila foi eleito Papa, com os efeitos conhecidos). Para o filósofo havia contradições internas e pressupostos insanáveis na teoria formulada por Karl Marx que foram acentuadas no modo como foram pensadas e postas em prática, em especial a partir da Revolução Russa de 1917. Nascido na Polónia, entusiasmado num primeiro momento por Marx, cedo pôde perceber que a liberdade crítica entrava em choque com a ideia de construir um homem novo. Por isso, teve de sair do seu País e foi acolhido na Universidade de Oxford, onde exerceu o seu magistério.



UMA VIDA DE ESTUDO
Filho de um economista e ensaísta, morto pela Gestapo no início da guerra, nascido em Radom (Polónia), Kolakowski teve uma formação perturbada pela guerra, o que o obrigou a uma formação doméstica e à frequência de escolas clandestinas. Depois da Guerra estudou Filosofia na Universidade de Lodz, tendo-se doutorado em 1953 pela Universidade de Varsóvia com uma tese sobre Espinosa. De 1959 a 1968 foi Professor de Filosofia e História na Universidade de Varsóvia. Foi membro do Partido Unificado dos Trabalhadores Polacos de 1947 a 1966, sendo considerado desde cedo uma boa promessa. Visitou a União Soviética e esse contacto com o estalinismo determinou uma visão crescentemente crítica da sua parte sobre o curso dos acontecimentos, tornando-se um marxista heterodoxo, preocupado com uma leitura humanista de Karl Marx. Esse afastamento determinaria a sua expulsão do Partido. São de 1956 as suas reflexões críticas sobre o determinismo marxista (publicadas em Nowa Kultura), onde está já implícita a ideia de que o fenómeno totalitário do estalinismo não constituía uma aberração, antes decorrendo da lógica final do marxismo, do determinismo e da ideia de uma sociedade terminal supostamente perfeita. Como dirá mais tarde: “as classes médias, em vez de se afundarem ou desaparecerem como proclamava a profecia marxista, cresceram mais e mais; o mercado, em vez de um obstáculo ao progresso tecnológico, revelou-se o seu mais poderoso estímulo; a pauperização relativa ou absoluta da classe trabalhadora também não aconteceu; a taxa decrescente de lucro, que causaria o colapso do capitalismo, foi outra esperança vã; a revolução proletária, a revolução resultante do conflito entre os trabalhadores da indústria e os capitalistas, nunca aconteceu”. Segundo uma sua expressão que se tornou consagrada: foi a “grande fantasia” nosso tempo, que começou com a promessa libertadora de Prometeu e acabou no terror estalinista. Neste período sentir-se-á cada vez mais atraído pelo papel do cristianismo na cultura, em especial pela valorização da liberdade na procura da verdade e do bem. A procura da transcendência exigiria a liberdade, abrindo caminho à dúvida, à crítica e ao reconhecimento da importância da imperfeição. Daí o contraste com a ideia de caminho necessário para uma sociedade perfeita pela imposição uma “verdade” política. Em 1968, parte para o Canadá, onde será Professor visitante na Universidade McGill (Montreal), em 1969 exerce idênticas funções na Universidade de Califórnia (Berkeley) e em 1970 já se encontra em Oxford, no All Souls College. Aí ficará até ao fim da vida, com breves interrupções, para leccionar em Yale e em Chicago. Nesse período inicial, os seus ensaios e intervenções foram banidos na Polónia, passando no entanto a circular clandestinamente nos meios da resistência. Um texto de 1971 intitulado “Teses sobre a Esperança e a Desesperança” servirá de inspiração aos grupos da sociedade civil que levarão à criação do “Solidariedade”. São reflexões muito práticas, mas com sólida fundamentação intelectual, sobre a necessidade da criação de movimentos espontâneos baseados na solidariedade voluntária. Kolakowki pôde, assim, ser, a um tempo, um intelectual muito influente na procura de novos caminhos de reflexão crítica, mas também um cidadão activo, permanente apoiante do processo de democratização da Polónia e da sua abertura à Europa e ao Mundo. Num texto célebre (“Idolatria da Política”, 1986) afirmou: “Aprendemos História não com vista a viver ou a ter sucesso, mas para sabermos quem somos”. Esta foi uma das suas preocupações permanentes, que suscitou críticas e perplexidades, uma vez que as suas reflexões críticas basearam-se sempre na ideia de que a liberdade obriga a trilhar os caminhos mais difíceis e inóspitos, sem medo dos destinos a que podem conduzir. Com uma grande admiração pelo modo de estar, de pensar e de agir de Kolakowki, um outro resistente célebre Adam Michnik disse dele que é “um dos mais proeminentes criadores da cultura polaca contemporânea”. A sua heterodoxia, o seu sentido crítico, a procura da compreensão da complexidade, tudo isso constitui o método que usou no sentido de abrir horizontes para uma sociedade aberta, cosmopolita, mas ciente da importância da diversidade cultural. Timothy Garton Ash, num texto recente associava a invocação de três personalidades marcantes, recentemente desaparecidas: Bronislaw Geremek, Ralf Dahrendorf e Leszec Kolakowski (Guardian, 22.7.09). Apesar das diferenças, salientava haver preocupações comuns a todos eles, relacionadas com o primado da dignidade da pessoa humana, com o respeito radical pela liberdade e com a salvaguarda dos direitos e deveres universais e das diferenças culturais. No fundo, o que os unia a todos era a liberdade de espírito e a consciência de que as pessoas são os verdadeiros actores da História.


UM ESPÍRITO BRILHANTE
“É o conflito de valores, mais do que a sua harmonia que mantém a cultura viva” – costumava dizer, e aí baseava o seu sentido crítico, que a dura experiência da vida lhe ensinara. Para o filósofo não seria possível nem desejável encontrar uma síntese harmoniosa dos diversos elementos contraditórios de que se faz a história humana. Ao ofício de pensar não cabe o acto de construir a verdade, mas sim criar um espírito de verdade. Essa era a sua preocupação fundamental. Essa procura exigente obriga a trilhar caminhos inesperados. Daí a necessidade de exercer sempre um magistério crítico, começando por desconfiar de nós mesmos. E a preocupação de Kolakowki com a História levou-o a demarcar-se das interpretações historicistas, antes preferindo partir dos acontecimentos, procurando aí exercitar o “espírito de verdade”: “Precisamos de defender e apoiar métodos tradicionais de investigação, elaborados ao longo dos séculos, para estabelecer o encadeamento dos factos históricos e separá-los de fantasias, ainda que possa acontecer alimentar tais fantasias. A doutrina segundo a qual não há factos, mas sim interpretações, deve ser rejeitada por ser obscurantista. E temos de preservar a nossa tradicional crença em que a história da humanidade, a história das coisas que realmente aconteceram, criadas por inúmeros acidentes únicos, é a história de cada um de nós, sujeitos humanos; uma vez que a crença nas leis históricas é produto da imaginação. O conhecimento histórico é crucial para cada um de nós; para as crianças da escola e os estudantes, para novos e velhos. Devemos absorver a história como algo que nos é próprio, com todos os seus horrores e monstruosidades, com a sua beleza e o seu esplendor, as suas crueldades e perseguições, assim como todos os magníficos trabalhos da mente ou da mão humanas; devemos agir desse modo, se queremos saber o nosso próprio lugar no universo; se queremos saber quem somos e o que fazer” (What Past is For”, Nov. 2003).


Guilherme d’Oliveira Martins

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