A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Europes – De l’Antiquité au XXème Siècle – Anthologie Critique et Commentée » de Yves Hersant e Fabienne Durand-Bogaert (Robert Laffont, 2000) é um instrumento fundamental para a compreensão do evoluir da ideia europeia. A Europa é um continente complexo nas suas raízes e influências. Muitas vezes se discutem as suas raízes, havendo a tentação ou de simplificar ou de esquecê-las. Lugar de conflitos e de trágicas disputas, a Europa foi-se afirmando através de sinais contraditórios, ora como lugar das liberdades e da dignidade humana, ora como sede de dominações e fonte de injustiças. No entanto, a Europa foi-se tornando um lugar de esperança e de razão, onde a democracia e os direitos fundamentais nasceram. E quando, nos dias de hoje, falamos de construção de um projecto europeu, centrado na União Europeia, temos de apostar na reflexão, na cultura e nas ideias, uma vez que um projecto de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural tem de criar condições para uma convergência activa de Estado e Povos livres e soberanos.

A VIDA DOS LIVROS
De 24 a 30 de Agosto de 2009.



«Europes – De l’Antiquité au XXème Siècle – Anthologie Critique et Commentée » de Yves Hersant e Fabienne Durand-Bogaert (Robert Laffont, 2000) é um instrumento fundamental para a compreensão do evoluir da ideia europeia. A Europa é um continente complexo nas suas raízes e influências. Muitas vezes se discutem as suas raízes, havendo a tentação ou de simplificar ou de esquecê-las. Lugar de conflitos e de trágicas disputas, a Europa foi-se afirmando através de sinais contraditórios, ora como lugar das liberdades e da dignidade humana, ora como sede de dominações e fonte de injustiças. No entanto, a Europa foi-se tornando um lugar de esperança e de razão, onde a democracia e os direitos fundamentais nasceram. E quando, nos dias de hoje, falamos de construção de um projecto europeu, centrado na União Europeia, temos de apostar na reflexão, na cultura e nas ideias, uma vez que um projecto de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural tem de criar condições para uma convergência activa de Estado e Povos livres e soberanos.


  
Matisse, L’enlévement d’Europe, 1927, National Gallery of Austrália, Canberra.



A IDEIA DE EUROPA. 
Edgar Morin em “Pensar a Europa” afirmou terem sido “interacções entre povos, culturas, classes, Estados, que teceram uma unidade, ela própria plural e contraditória”. Estamos perante uma concentração extraordinária de influências e potencialidades. E não é possível falar e compreender as culturas europeias a não ser analisando o que os europeus criaram dentro e fora da Europa. Há, por isso, uma tensão e uma dialéctica entre a Europa na Europa e a Europa fora da Europa. Os europeus começaram por ter diversas origens e raízes, com um peso muito especial para a Ásia, de que a Europa é uma extensão natural. Daí a importância da cultura indo-europeia e do diálogo na Antiguidade Oriental e Clássica entre ocidente e oriente, desde o Crescente Fértil ao Mediterrâneo Oriental. A Europa que herdámos nasceu em volta do Mediterrâneo e depois continentalizou-se ao longo dos séculos. As guerras civis europeias do século XX, com projecção mundial e resultados trágicos, levaram a que, sobretudo depois de 1945, tenha havido um forte movimento pan-europeu, que o Congresso de Haia de 1948 procurou projectar e desenvolver como sobressalto cívico e factor preventivo da guerra e dos conflitos desregulados. Denis de Rougemont, designadamente no Centro Europeu de Cultura, de Genebra, foi um dos principais protagonistas dessa acção intelectual, que passou pela procura e descoberta de autores e correntes de pensamento europeístas.

UMA IDENTIDADE COMPLEXA E PLURAL.
Milan Kundera disse um dia que o europeu poderia ser definido como aquele que tem nostalgia da Europa. Tendo afirmado que na Idade Média a unidade europeia era baseada na religião e que na Idade Moderna na cultura, perguntava qual seria o factor actual de unidade? A técnica? O mercado? É, no entanto, difícil responder ou mesmo falar de uma identidade europeia. As raízes são múltiplas e até contraditórias. Uma identidade homogénea não existe. Não há uma nação europeia, mas um caleidoscópio heterogéneo, pleno de complementaridades. No entanto, vista de fora, a Europa tem uma personalidade, que muitas vezes é olhada com desconfiança, por causa da tentação eurocêntrica. Na célebre conferência de Genebra de Setembro de 1946, Karl Jaspers procurou dar respostas a este intrincado problema. O pensador falou-nos de Liberdade, de História e de Ciência como marcas dessa personalidade europeia. “Se queremos citar nomes, a Europa é a Bíblia e a Antiguidade. A Europa é Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, é Fidias, é Platão e Aristóteles e Plotino, é Virgílio e Horácio, é Dante e Shakespeare, é Goethe, Cervantes, Racine e Molière, é Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo, Rembrandt, Velásquez, é Bach, Mozart, Beethoven, é Agostinho, Anselmo, Tomás, Nicolau de Cusa, Espinosa, Pascal, Rousseau, Kant, Hegel, é Cícero, Erasmo, Voltaire. A Europa está nas suas catedrais, nos seus palácios, nas suas ruínas, é Jerusalém, Atenas, Roma, Paris, Oxford, Genebra, Weimar. A Europa é a democracia de Atenas, da Roma republicana, dos suíços e dos holandeses, dos anglo-saxões…” E nós teremos de acrescentar António de Lisboa, Vasco da Gama, Camões, Vieira, Coimbra, Lisboa… A Liberdade (para Jaspers) significa inquietude e agitação, vitória da vontade sobre o arbitrário. A consciência trágica liga-se à esperança cristã, e o diálogo entre culturas torna-se mais do que adaptação, transformando-se em busca de uma consciência de si. A História é a lógica sequência da Liberdade – situando o que é real e o que é possível, a partir da pessoa humana, num caminho sem fim. A Ciência, por fim, parte da ideia de que o saber nos torna mais livres, pelo sentido crítico, pela experiência, pelo uso equilibrado da razão.

O MISTÉRIO DE UMA DESIGNAÇÃO
A Europa foi baptizada pelos gregos, mas as razões da designação perdem-se nos tempos. O adjectivo “Eurôpos” significa o que é largo e espaçoso. Como pessoa, “Eurôpé” quer significar aquela que tem grandes olhos – que permitem ver longe. A palavra tem afinidades evidentes com Eurídice. O rapto da formosa Europa por Zeus, transformado em touro, é a alusão mítica que deve ser referenciada quando falamos de Europa. Uma princesa da Ásia é trazida para a Grécia, ligando a civilização fenícia à cretense. As raízes mediterrânicas estão bem em evidência. Para designar um continente, encontramos pela primeira vez uma referência à Europa no Hino a Apolo de Homero (590 a.C.) opondo Delos a Delfos, as ilhas e o continente. Para Hesíodo, Europa é uma das três mil Oceaninas. Para Heródoto, a Europa é um dos três continentes conhecidos pelos gregos, com a Líbia e a Ásia. Horácio, nas Odes, fala da Europa mítica e dá-lhe um sentido moral. Hipócrates fala dos europeus e das condicionantes físicas e climáticas. Aristóteles opõe a liberdade cultivada pelos europeus e a tirania suportada pelos asiáticos, falando do meio justo praticado pelos gregos, tudo sob a influência do clima, na linha de Hipócrates. Longe do eurocentrismo, Isidoro de Sevilha representa o mundo como convergência de diversas influências (Ásia, Europa e África). Como afirma Jacques Le Goff, a grande novidade da Idade Média europeia é a afirmação do cristianismo: latino a ocidente e grego a oriente. Plena de diferenças e contradições, a Europa medieval vai abrir portas à inovação técnica, científica e artística, ao espírito de aventura e de iniciativa, às mudanças religiosas e de mentalidades e à expansão mediterrânica e depois atlântica. A ideia de “cristandade” vai afirmar-se, sobretudo até à colonização da América. A partir de então, a liberdade de consciência defendida pelos inconformistas que partiram para o Novo Continente vai desenvolver o pluralismo, passando a falar-se muito mais de Europa do que de cristandade. Enea Sílvio Piccolimini (futuro papa Pio II) defende uma Europa de valores culturais comuns, de uma república das letras, que chega ao oriente cristão. O fidalgo checo Georges Podiébrad, em 1462, fala, de modo pioneiro, na necessidade de se criar uma Confederação de nações que pudesse fazer renascer (e superá-la) a antiga Respublica Christiana. Camões liga a Europa ao momento único de dar “novos mundos ao mundo”: “Eis aqui quase cume da cabeça / de Europa toda, o Reino Lusitano, / onde a terra se acaba e o mar começa…”. E os movimentos de futuro começam a nascer: o Abade de Saint Pierre propõe (1713) a criação da paz perpétua, Leibniz considera-a plausível, mas Rousseau, sem pôr em causa a boa intenção de Saint Pierre, considera o projecto imediato como absurdo, por ausência de condições políticas. Montesquieu fala de uma “monarquia universal na Europa”. Voltaire refere a Europa moderna, para pôr em xeque a Europa antiga. Mas os românticos, tendo à cabeça Novalis, vão regressar à ideia europeia, como sinónimo de sentimento e de razão, envolvendo De Maistre, Saint Simon, Guizot, Mazzini e Victor Hugo. O nosso Almeida Garrett fala de “Portugal na Balança da Europa”. O romantismo da Primavera dos Povos (1848) gera um desejo de unidade e de paz, mas também a liberdade política e a independência de jovens nações. Se, por um lado, começaram a nascer os projectos pan-europeus, também emergiram os nacionalismos proteccionistas. As contradições do século XX têm a ver com isso mesmo, uma visão idílica deu lugar à tragédia, por ausência de um movimento cívico enraizado – tendo como objectivo uma Europa de paz e de democracia…
                                               Guilherme d’Oliveira Martins 

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