A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Entre a Selva e a Corte – Novos Olhares sobre Vieira” (Esfera do Caos, 2009), coordenado por José Eduardo Franco é uma reunião de ensaios que procuram analisar a vida e a obra do Padre António Vieira sob várias perspectivas com o objectivo de permitir uma visão alargada não só do pensamento (bastante complexo) do orador sagrado, mas também da inserção da sua figura extraordinária na história portuguesa e europeia, com destaque para as posições audaciosas e precursoras que assumiu, em especial no tocante aos direitos humanos. Em complemento da vasta bibliografia produzida nos últimos anos sobre o Padre Vieira, temos um conjunto de textos, bastante abrangente, que permite ao leitor comum apreender o essencial dos resultados recentes das investigações sobre o prolífico autor da “História do Futuro”.


A VIDA DOS LIVROS
De 17 a 23 de Agosto de 2009

 


“Entre a Selva e a Corte – Novos Olhares sobre Vieira” (Esfera do Caos, 2009), coordenado por José Eduardo Franco é uma reunião de ensaios que procuram analisar a vida e a obra do Padre António Vieira sob várias perspectivas com o objectivo de permitir uma visão alargada não só do pensamento (bastante complexo) do orador sagrado, mas também da inserção da sua figura extraordinária na história portuguesa e europeia, com destaque para as posições audaciosas e precursoras que assumiu, em especial no tocante aos direitos humanos. Em complemento da vasta bibliografia produzida nos últimos anos sobre o Padre Vieira, temos um conjunto de textos, bastante abrangente, que permite ao leitor comum apreender o essencial dos resultados recentes das investigações sobre o prolífico autor da “História do Futuro”.



PERSONALIDADE MULTIFACETADA
Estamos perante dezasseis ensaios em que a figura do Padre António Vieira é tema, o que permite compreender melhor o nosso século XVII, a partir de uma personalidade fascinante, indiscutivelmente das mais ricas do seu tempo. Os textos são da autoria de Luís Machado de Abreu (“Moldura para um Retrato de Vieira”), Carlota Urbano (“O P.A.V. e a Companhia de Jesus”), Fernando Cristóvão (“A grandeza de um imperador”), Alcir Pécora (“O Bom Selvagem e o Boçal: Argumentos de V.), João Francisco Marques (“A crítica sócio-política na parénese quaresmal dos sermões dos pretendentes”), Leonel Ribeiro dos Santos (“Da Verdade e do Tempo: A.V. e a ‘Controvérsia dos Antigos e dos Modernos’”), Miguel Real (“A Arquitectónica do Quinto Império na carta ‘Esperanças de Portugal’ (1659)”, Pedro Calafate (“A Escolástica Peninsular no Pensamento Antropológico de A.V.”), José Eduardo Franco (“Uma Utopia Católica sob suspeita: Censura Romana a Clavis Prophetarum”), Luís Filipe Silvério Lima («“Ainda ressuscitados são cadáveres” – os Sermoens de V. enquanto fonte para o historiador»), Paulo Assunção (“O Pensamento Económico de A.V.: um mar de pensamentos na busca de soluções para Portugal”), Valmir Francisco Muraro (“As Cinco Pedras da funda de Davi: Sermões italianos do P.A.V.”), Helena de Castro (“A problemática dos Direitos Humanos na crítica de V. à Inquisição”), Patrícia Santos Shermann (“V. lido no Sudão. O P.A.V. e os jesuítas no imaginário missionário católico face ao colonialismo britânico em África”), Annabela Rita (“V. num sermão entre luz e sombra”) e Manuel J. Gandra (“P.A.V.: paralelo da sua vida e obra com o providencialismo, o milenarismo e o messianismo coetâneos”; além de um pósfacio de Paulo Mendes Pinto. Ao longo destes textos, podemos verificar que a vida do Padre Vieira e a sua inteligência pródiga permitem-nos compreender que o pensamento teológico e religioso do orador sagrado associa-se permanentemente à sua reflexão estratégica sobre o futuro de Portugal. Daí a ideia de “segundo povo eleito” aplicada aos portugueses e a tentativa de reconstituir um império universal que pudesse superar as fragilidades sentidas no século XVI e que tinham conduzido dos “fumos da Índia” à decadência. Como bem recorda Miguel Real, num texto muito interessante e exaustivo de análise à carta “Esperanças de Portugal” (1659): “o Quinto Império consiste no estado perfeito realizado ou consumado do reino de Cristo em todo o mundo; é o reino em que todos os Príncipes e nações e povos viverão em paz e segurança, cessarão todas as guerras, as comunidades serão boas observantes da lei divina, sendo Cristo adorado e obedecido por todos; pressupõe-se que a justiça seja universal, o bem estar pleno e todas as qualidades humanas negativas desaparecerão”. Vieira associa, assim, o discurso profético a um objectivo político, de que seriam artífices o Sumo Pontífice como imperador espiritual e o Rei de Portugal, D. João IV, o Desejado, como imperador temporal. E do encontro que do jesuíta, em Amesterdão, com Menasseh ben Israel resultará uma síntese judaico-cristã – a ideia de que a leitura profética que fizera da História de Portugal (em 1642) teria de ser unida à leitura profética judaica e, cruzadas as interpretações, deveriam formar no corpo da teoria do Quinto Império, sendo o misterioso ano de 1666 (MDCLXVI) alvo de intensas especulações cabalísticas.  


UMA IDEIA DE PROGRESSO ASCENDENTE
Como recorda José Eduardo Franco, a propósito da “Clavis Prophetarum” (onde a dimensão teológica é mais forte do que as preocupações com Portugal), devido à visão “de um progresso ascendente da história em direcção à cosmicização do cristianismo e da transfiguração dos tempos em Cristo pelo influxo da graça crística, chamou Margarida Vieira Mendes ao Padre António Vieira um Teilhard de Chardin avant-la-lettre”. Há, deste modo, uma curiosa articulação entre uma concepção do mundo e da humanidade, prenunciando o humanismo universalista, e o delineamento da missão de Portugal. Como afirmou Vieira em Roma no Sermão de Santo António (dos anos setenta), a condição ontológica de Portugal determina um papel na Europa e no mundo, que não pode ater-se à missão imperial secular. Daí dever “ter ofício de luz (lux mundi) e ser tecelão da unidade perdida no seu continente, na velha cristandade e até no mundo aberto aos olhos europeus. Mundo esse então desordenado em termos de relações entre povos, pois em permanente conflito e disputa” (p. 12). As diligências junto da comunidade sefardita de Amesterdão são muito significativas. Do que se tratava era de tentar fixar riqueza e recuperar o capital humano e os meios perdidos com “o mito obsessivo da limpeza de sangue e da religião” e de ousar propor reformas no Santo Ofício em nome de uma perspectiva mais humana e até de uma maior eficiência económica. Aliás, Paulo de Assunção na sua interessante análise do pensamento económico de Vieira, em que contrapõe os pensamentos de Bodin e Althusius, referindo ainda a obra de António de Freitas Africano, “Primores e Regalias do Nosso Rei” (1641), afirma: “o elemento judeu era um aliado para Portugal e não um inimigo, pois ele é que permitiria que o reino retomasse o passado glorioso. Vieira é defensor de uma política de equilíbrio e neste sentido demonstra ser um verdadeiro jesuíta. (…) Na lógica do seu discurso o que define a acção era a busca de equilíbrio”. No fim de contas, se os mercadores judeus eram súbditos de outros príncipes por que não também relativamente ao monarca português. Nota-se, assim, um pensamento integrado por parte de Vieira, que o insere no grupo dos espíritos mais lúcidos do seu tempo, preocupados com a independência estratégica do reino.


CULTOR DA MATURIDADE DA LÍNGUA
A leitura dos diferentes ensaios vai-nos revelando novas e inesperadas facetas do orador sagrado, do teólogo, do pensador, do diplomata e do visionário. É fascinante ver como os mais diversos temas são abordados, sempre com rigor e com a preocupação de cultivar um estilo persuasivo e mobilizador. Sabemos, porém, que as vicissitudes políticas não permitiram que obtivesse pleno sucesso. No entanto o seu pensamento e a sua palavra projectam-se ainda para os dias de hoje com especial força. Como afirma Fernando Cristóvão: “com os seus escritos, a língua portuguesa tornou-se mais dúctil e plástica, e a nossa cultura, sobretudo na sua expressão literária, ganhou dimensões de universalidade. E tão cuidadoso foi, que no fim da vida, retocou e aprimorou os seus sermões, consciente também da sua missão de escritor”. Segundo a inspiração barroca, Vieira procurou, porém libertar-se dos excessos maneiristas, antes procurando um estilo “fácil e natural” que pudesse fixar a atenção dos ouvintes, na sua diversidade. A eloquência ligava-se ao uso impecável das figuras de estilo (silogismos, paradoxos, hipérboles, apóstrofes) segundo uma preocupação de ensinar e de deleitar. E basta dar os exemplos do “Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda” (1640) e do “Sermão de Santo António aos Peixes” (1654) para percebermos como Vieira soube ligar com única mestria esses objectivos.


Guilherme d’Oliveira Martins

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