A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Nós, os vencidos do catolicismo” (Tenacitas, 2003) de João Bénard da Costa é o pretexto para falarmos de quem não podemos esquecer e que deveria ainda estar connosco, para continuar a contar as suas histórias deliciosas e a exercer a sua sabedoria e o seu talento. Os textos que constituem este pequeno livro precioso são apenas um aperitivo daquilo que deveriam ser as suas memórias e que apenas nos foram dadas (esparsa, mas suculentamente) nas suas crónicas em várias “casas encantadas” que encantavam os seus leitores. E se houve quem insistisse por estes dias no seu amor pelo cinema, que foi indiscutível, devo dizer que o João foi muitíssimo mais do que essa ligação fantástica. Era um homem de uma sensibilidade artística única, um escritor dotadíssimo, e era um deleite para todos, os que tiveram a graça de o ler, de o ouvir, podendo gozar do cuidado e do amor que punha na interrogação e na descoberta dos pequenos mistérios das obras de arte (desde a natureza à pintura, à música e, naturalmente, ao cinema…).

A VIDA DOS LIVROS
de 25 a 31 de Maio de 2009


“Nós, os vencidos do catolicismo” (Tenacitas, 2003) de João Bénard da Costa é o pretexto para falarmos de quem não podemos esquecer e que deveria ainda estar connosco, para continuar a contar as suas histórias deliciosas e a exercer a sua sabedoria e o seu talento. Os textos que constituem este pequeno livro precioso são apenas um aperitivo daquilo que deveriam ser as suas memórias e que apenas nos foram dadas (esparsa, mas suculentamente) nas suas crónicas em várias “casas encantadas” que encantavam os seus leitores. E se houve quem insistisse por estes dias no seu amor pelo cinema, que foi indiscutível, devo dizer que o João foi muitíssimo mais do que essa ligação fantástica. Era um homem de uma sensibilidade artística única, um escritor dotadíssimo, e era um deleite para todos, os que tiveram a graça de o ler, de o ouvir, podendo gozar do cuidado e do amor que punha na interrogação e na descoberta dos pequenos mistérios das obras de arte (desde a natureza à pintura, à música e, naturalmente, ao cinema…).



CONTRADIÇÃO EM CARNE VIVA
João Bénard escolheu como título das recordações dos encontros e desencontros com a Igreja e o mundo, a propósito da JUC, do Dr. Rodrigues, da “Aventura da Moraes” e de “O Tempo e o Modo”, o poema de Ruy Belo, “nós, os vencidos do catolicismo”, onde se diz: «Nós que perdemos na luta da fé /não é que no mais fundo não creiamos /mas não lutamos já firmes e a pé /nem nada impomos do que duvidamos». José Tolentino Mendonça recordou o poema no dia da despedida, mas lembrou o seu significado. Afinal, o facto dessa geração se considerar vencida, só seria a demonstração de que muitos se mantiveram espiritualmente cristãos, não discípulos de um vencedor, mas de um vencido aos olhos dos espectadores comuns. “Victus sed Victor”. “Não é que no mais fundo não creiamos”, dizia o poeta. E, passados os anos, essa geração de aparentes vencidos deixou a semente da liberdade de espírito e do inconformismo. E João Bénard é um exemplo de que a sementeira deu frutos, porque gerou a exigência da compreensão de que era a dignidade do ser, de que falava Sophia, a estar em causa, e não uma qualquer mera consideração de índole política. Essa meditação foi feita, aliás, há poucos meses, quando nos despedimos de António Alçada Baptista, e a verdade é que, fora da lógica estrita do poderes efémeros, ficou uma ideia de ser cristão nos tempos modernos, junto dos não-cristãos, na cidade plural, sem esquecer a convicção de que “nós não somos deste mundo” (na expressão de Ruy Cinatti).


CONTRADIÇÃO E PARADOXO
O que se sente nesses textos é um sentimento contraditório e paradoxal de quem se confronta com a tensão entre convicções, de quem acredita na força da liberdade e da crítica, para além dos jogos de poder e de acomodação. O partido democrata-cristão não estava no horizonte dos católicos empenhados na luta contra a “desordem estabelecida”, e isso intrigava os “compagnons de route” laicos, dispostos a ajudar a concretizar essa ideia, como modo de alargar a área de intervenção oposicionista. As razões tinham a ver com o conhecimento dos factos. Afinal, o drama sentido por Emmanuel Mounier depois de 1945 estava na memória de todos – o MRP depressa se tornou acomodado e conservador, confirmando as piores suspeitas, enquanto a “mão estendida” dos comunistas revelar-se-ia perversa. E se uns ainda acreditaram (fugazmente) na hipótese da transição gradual (de Marcelo Caetano), a maioria (e sobretudo os mais jovens) estava fora dessa expectativa. E o Concílio Vaticano II, se abriu novos horizontes, muito amplos, exigiu muito mais da Igreja do que ela podia dar. Esse o drama íntimo que atingiu os “vencidos do catolicismo”, divididos entre a esperança e a realidade, insatisfeitos todos, ora por mor dos problemas criados à instituição perante o poder instituído, ora em razão da pressão radical sentida nos meios oposicionistas… E a vinda do Papa Paulo VI a Portugal, em 1967, constituiu o ponto de ruptura, relatado dolorosamente por João Bénard, sendo o revelador da insustentabilidade de um compromisso ambíguo. Afinal, a Igreja mudava, a emergência da descolonização entrava na ordem do dia, “o acordar da África Negra” obrigava a uma atitude mais clara. A abertura política exigia o fim da guerra. Não era possível alimentar mais equívocos, os “sinais dos tempos” (de João XXIII) não se compadeciam com panos quentes (“vemos, ouvimos e lemos /não podemos ignorar”, na vigília da passagem do ano para 1969, na Igreja de S. Domingos abala as consciências, como também depois acontecerá na Capela do Rato no fim de 1971). Diz-nos João Bénard: “Entre mortos e feridos, expressão que não é tão metafórica como parece, muitos escaparam? É certo, certíssimo é. Mas, pelo menos entre os ‘quadros’, foram mais os que tombaram do que os que prosseguiram a avançada, foram mais os ‘vencidos do catolicismo’ do que os ‘vencedores’ dele ou nele. Por isso, o poema de Ruy Belo, que comecei por citar, falou por muitos e não apenas por ele que, nas exaltações e nas depressões desses vinte anos dos vinte anos de vários, nem sequer foi um dos vultos mais visíveis”.


O CULTO DA MEMÓRIA
Ler os textos de João Bénard da Costa é um exercício permanente de deleite. É um escritor de primeira água e um cultor da musicalidade das palavras e das ideias. “A Arrábida aconteceu antes de eu acontecer. Não me lembro de mim sem me lembrar dela e vice-versa”. E tantas vezes nos embeveceu com o seu amor da mata mediterrânica sagrada, de medronheiros, urzes e carvalhos. E, falando por mim, que me divido entre o Algarve e a Arrábida, como realidades míticas, que foram desaparecendo, senti sempre que as suas invocações do Conventinho e das suas imediações eram como as descrições de Dante no Paraíso (as mesmas que encontro nos êxtases de San Miniato al Monte). E perante as paisagens e a fixação dos seus pormenores, em paleta multímoda de cores, compreende-se a génese do cinéfilo – apaixonado pelas actrizes arrasadoras e pelos grandiosos panoramas. E cedo houve a crença nas “grandes amizades”, por referência à obra emblemática de Raïssa Maritain. Pedro Tamen, Nuno Bragança, M.S. Lourenço, José Escada, Alberto Vaz da Silva são os companheiros de vida e de ideais. É o tempo do cine-clubismo e do CCC, Centro Cultural de Cinema, da presidência da Juventude Universitária Católica e do jornal “Encontro”, nas sequelas da contestação estudantil ao Decreto nº 40900. Bresson e Rosselini eram duas das suas paixões. 1958 é um ano decisivo – a candidatura de Delgado, a Carta do Bispo do Porto, o começo do fim  da aliança que sustentava o regime. Depois, foi a tese sobre Mounier, a Livraria Moraes, o convite de António Alçada Baptista, e a revista “O Tempo e o Modo”, mas ainda os abaixo assinados sobre a democracia e sobre os métodos da PIDE. E a revista torna-se um lugar de combate pela democracia mas também pela liberdade de criação artística contra a tentação das cartilhas e das modas. No íntimo JBC pensava que no dia em que houvesse democracia deixaria a actividade política, mas até esse momento teria de estar na luta. A história da revista está feita e é da maior importância. A nova série, dominada pelos ventos maoístas de Maio de 68, tornar-se-ia muito diferente da antiga. João Bénard ainda tentou manter o essencial, mas perdeu, e isso custou-lhe muito.


LIBERDADE DA CULTURA
Depois a democracia veio e, como sempre pensara, privilegiou a actividade intelectual. Nas antevésperas de 74, animou a Associação para a Liberdade da Cultura (de Pierre Emmanuel e Roselyne Chenu), envolvendo as figuras mais marcantes da nossa vida intelectual. Na Gulbenkian, ficou memorável a sessão de 1973 de exibição de “Roma Cidade Aberta”, de Rosselini na presença do próprio autor – que terminou entre aplausos e palavras de ordem pela liberdade. Henri Langlois, o director da Cinemateca Francesa diria que viu então o prenúncio claro da mudança política iminente. Dos anos oitenta até hoje JBC marcou profundamente a Cinemateca Portuguesa. E o futuro dirá, por certo, que integrou essa missão numa visão ampla em que o cinema e todas as artes se confrontam e completam. O cinema foi uma das suas paixões, mas foi o tema “haverá uma beleza que nos salve?” que ocupou o seu magistério intelectual fulgurante. Como não lembrar a resposta que um dia deu à pergunta sobre qual a maior esperança que tinha para o futuro: “Conhecer Deus”. Essa a sua verdadeira paixão. Na quinta-feira de Ascensão, em que nos deixou, tinha chegado às livrarias o livro, cuja tradução portuguesa, era por ele aguardada com entusiasmo juvenil – as “Cartas” de Etty Hillesum, que constituiria, por certo, tema da sua próxima crónica.


Guilherme d’Oliveira Martins


É necessário reler João Bénard…


Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

Subscreva a nossa newsletter