A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“O Último Eça” de Miguel Real (QuidNovi, 2006) é mais do que uma obra sobre Eça de Queiroz, uma vez que cuida de uma reflexão global sobre a Geração de Setenta, a propósito da qual correm diversas simplificações e até caricaturas, com as mais diversas marcas, desde as que insistem no decadentismo ou no vencidismo, tantas vezes confundido com aceitação do atraso como fatalidade, até aos que preferem salientar um suposto nacionalismo, em ruptura com as primeiras manifestações de uma geração inconformista e iconoclasta. Afinal, a grande pergunta que se põe é a de saber se há coerência ou descontinuidade no percurso ideológico de um dos grupos intelectuais mais influentes de toda a história da cultura portuguesa. Estamos, assim, perante uma investigação que permite compreender qual a real importância de Eça e dos seus amigos na transição para o século XX.

A VIDA DOS LIVROS
De 30 de Março a 5 de Abril de 2009


“O Último Eça” de Miguel Real (QuidNovi, 2006) é mais do que uma obra sobre Eça de Queiroz, uma vez que cuida de uma reflexão global sobre a Geração de Setenta, a propósito da qual correm diversas simplificações e até caricaturas, com as mais diversas marcas, desde as que insistem no decadentismo ou no vencidismo, tantas vezes confundido com aceitação do atraso como fatalidade, até aos que preferem salientar um suposto nacionalismo, em ruptura com as primeiras manifestações de uma geração inconformista e iconoclasta. Afinal, a grande pergunta que se põe é a de saber se há coerência ou descontinuidade no percurso ideológico de um dos grupos intelectuais mais influentes de toda a história da cultura portuguesa. Estamos, assim, perante uma investigação que permite compreender qual a real importância de Eça e dos seus amigos na transição para o século XX.



QUE DEFINIÇÃO PARA O ÚLTIMO EÇA?
A partir dos anos oitenta do século XIX há quem encontre um Eça de Queiroz diferente do jovem naturalista com ânsia revolucionária. No entanto, em vez de uma evolução conformista, o romancista não se tornou (segundo Miguel Real) alguém “burguesmente resignado, convertido ao santo lar parisiense, ao tradicionalismo ruralista português e ao fundo católico e patrioteiro nacional ou nacionalista”. Por outro lado, o “último Eça” também não se tornou o “revolucionário militante, socialista-cristão, pregador do ideal franciscano da vida”, e “não foi um Eça fradiquista, decadentista, vencidista, diplomata resignado, cidadão passivo, ‘insulado’ na sua concha parisiense de pequeno-burguês… Para Miguel Real, o último Eça terá sido, sim, um intelectual “de sensibilidade e consciência profundamente empenhadas na elevação económica e social das massas urbanas e rurais ‘pobres’, alimento das suas crónicas jornalísticas, transferindo, porém, à semelhança de Antero de Quental e Oliveira Martins da década de 1880, o empenho político revolucionário dos 20/30 anos, para um comprometimento ético universal, não cristão mas meta-histórico (ainda que ilustrado com figuras históricas da tradição cristã), não exclusivamente português mas europeu, problematizador do estado de esgotamento civilizacional da Europa (…) e de Portugal…”. Uma coisa é certa, lendo com olhos de ver a obra do Eça dos anos finais, facilmente percebemos que há uma coerência com o espírito inicial, por parte de quem desejava essencialmente ver o seu País na senda da modernidade, não condenado ao provincianismo e à irrelevância. Que quis o jovem Eça ao assumir um caminho propositado de escândalo, senão abanar as consciências nacionais, contra a lógica do fanatismo, do falso moralismo e do contentamento do isolamento e do atraso? Ao vermos o percurso completo do romancista, facilmente nos apercebemos de que o que está no seu pensamento é a necessidade de abrir horizontes – na linha do que se tinham proposto os organizadores das Conferências democráticas. Dir-se-á, no entanto, que, em 1871, havia um espírito revolucionário (alimentado pelos ventos da Comuna parisiense) que arrefeceu no grupo reformista que viria a denominar-se (por ironia) como “vencidos da vida”. Os tempos eram outros, mas do que tratava era de pôr o país ao ritmo da Europa. “Falhámos a vida, menino” – disse Carlos da Maia a Ega. No entanto, Eça não é Carlos (como Garrett não era o outro Carlos das “Viagens”), e, longe de desistir, como parecia estar a acontecer com Portugal, vai persistir, apoiando as ideias do seu amigo Oliveira Martins, e seguindo o magistério moral de Antero. “A Ilustre Casa” vai assim continuar o estado de espírito do autor de “Os Maias”, que são a tradução romanesca do “Portugal Contemporâneo”. E não é no sentido conformista que se orienta Gonçalo Mendes Ramires. Sentem-se, afinal, os ventos da “Vida Nova”. E, como Miguel Real afirma, o que Eça vai tentar é “descobrir alternativas sociais e civilizacionais para o esgotamento político e espiritual da sua geração, tomando como ponto de partida não a objectividade das relações sociais à luz de uma perspectiva histórica voluntarista e determinista (década de 1870), mas à luz da subjectividade vivencial das suas próprias recordações de História de Portugal…”.


A PERIODIZAÇÃO QUEIROSIANA
– Depois de uma exaustiva e rigorosa análise da historiografia dos estudos queirosianos, divididos em três períodos: o testemunhal (1900-1930), o de balanço (1930-1950) e o crítico (1950-2000), o autor elabora uma proposta de periodização da obra de Eça, em quatro fases, como faz Carlos Reis, ainda que com outras designações e metodologia e com a consideração de fases intermédias: a do Jovem Eça (1866-1871-72), que conduz a um período a transição que vai do “Mistério da Estrada de Sintra” até a “As Farpas” (numa inclinação progressiva para a “Escrita do Real”); a do Empenhamento Social (1872-1880) com «sobrevalorização dos resultados científicos e da atitude experimentalista, sintetizada com o nome positivista de ‘progresso’», denunciando injustiças e perversões, na lógica nua e crua do naturalismo e da “escrita do real”, referida por C. Reis; a fase Crítica (1880-1888), desde a imaginação de “O Mandarim” e de “A Relíquia” ao cepticismo de “Os Maias”, numa espécie de dilema não resolvido (que liga duas atitudes que, no fundo, se complementam); e, no fim, a fase Humanista (1888-1900), que Carlos Reis designa como de “eterno retorno”, que começa com a transição até 1892, marcada pelo desejo de “acordar” Portugal de um sono e de uma indiferença doentios. O texto “Novos Factores da Vida Política Portuguesa” (publicado anonimamente em 1890 na “Revista de Portugal”, e durante muito tempo atribuído a Oliveira Martins) é, aliás, premonitório e contém, a um tempo, um desejo e uma vontade – desejo de ver o País superar a decadência e vontade de colaborar activamente nesse sentido, designadamente através da revista que Eça fundara. Este tempo é o do “desprendimento da conjuntura histórica e circunstancial e a projecção, nos factos narrados e na estratégia da narração, de uma visão sobre a totalidade da História, isto é, de uma visão meta-histórica”. E desta forma predomina a subjectividade, revisitam-se os temas fundamentais da História da Civilização, atenua-se a observação realista e sobrevaloriza-se a comparação, bem como valoriza-se o “pobre” (por exemplo, com invocação das jacqueries em “S. Cristóvão”) e promove-se a ideia de justiça…

QUE HUMANISMOS?
– Muitos rios de tinta têm corrido sobre “A Cidade e as Serras”, sobre a figura de Fradique Mendes e sobre “A Ilustre Casa de Ramires”. O autor de “O Último Eça” fala-nos circunstanciadamente dessas polémicas. E conclui que a história de Jacinto e o seu diálogo com Zé Fernandes são incompatíveis com qualquer simplificação nacionalista. E Fradique deve ser visto como pré-heterónimo definidor de uma atitude emancipadora. Olhe-se a figura de Gonçalo Mendes Ramires no centro de uma observação minuciosa do “estado de Portugal”, a partir de dentro (e não de fora, como em Fradique), segundo o “modelo realista da observação da realidade social”, mas não já na lógica positivista. Pedro Luzes, numa obra fundamental (“Sob o Manto Diáfano do Realismo. Psicanálise de Eça de Queirós, Fim de Século, 2001), fala mesmo de uma transformação profunda em Eça, patente em “A Ilustre Casa”: passa de um complexo de Édipo negativo (rejeição da mãe, atracção pelo pai) a um complexo positivo (casamento com D. Emília), com o surgimento de novas figuras paternais, os amigos “Vencidos da Vida” – que aparecem no romance “metamorfoseados em antepassados, em avós, mas que foram na realidade contemporâneos”. Miguel Real fala de um “humanismo de hesitação”, num dilema entre as virtudes populares e as manipulações caciquistas da classe política, entre “os valores que orientavam o antigo Portugal e (…) o novo Portugal liberal, burguês, comerciante, interesseiro e individualista”. Afinal, importaria lançar uma “vida nova” individual e colectiva. Assim, o último Eça e os seus amigos, longe do conformismo, têm de ser compreendidos como apostadores no futuro.
                                           Guilherme d’Oliveira Martins

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