A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Quando a personagem Tintim chega aos oitenta anos de vida, cumpre referir uma obra fundamental para o conhecimento do fenómeno. Falamos de “Hergé, Filho de Tintim” de Benoît Peeters (tradução de Paula Santana Leite; Verbo, 2007), livro publicado para assinalar o centenário do nascimento de Georges Remi. No ponto de partida desta biografia exaustiva, centrada na personalidade complexa do criador do herói de “Estrela Misteriosa” está a afirmação singularíssima de Hergé: “Tintim era eu, com tudo o que em mim existe de necessidade de heroísmo, de coragem, de sinceridade, de malícia e de desembaraço. Era eu, e garanto que nem perdia tempo a perguntar a mim mesmo se agradava ou não aos miúdos. E os temas que escolhia eram temas que me apaixonavam, sobre os quais havia algo a dizer, sobre os quais eu tinha algo a dizer”… E assim, na aparente simplicidade, Tintim é um caso especial.

A VIDA DOS LIVROS
de 12 a 18 de Janeiro de 2009 (texto reformulado)


Quando a personagem Tintim chega aos oitenta anos de vida, cumpre referir uma obra fundamental para o conhecimento do fenómeno. Falamos de “Hergé, Filho de Tintim” de Benoît Peeters (tradução de Paula Santana Leite; Verbo, 2007). No ponto de partida desta biografia exaustiva, centrada na personalidade complexa do criador do herói de “Estrela Misteriosa” está a afirmação singularíssima de Hergé: “Tintim era eu, com tudo o que em mim existe de necessidade de heroísmo, de coragem, de sinceridade, de malícia e de desembaraço. Era eu, e garanto que nem perdia tempo a perguntar a mim mesmo se agradava ou não aos miúdos. E os temas que escolhia eram temas que me apaixonavam, sobre os quais havia algo a dizer, sobre os quais eu tinha algo a dizer”… E assim, na aparente simplicidade, Tintim é um caso especial.


 
in “Tintim no Tibete” (Verbo).


UM CASO À PARTE
Tintim é, de facto, um caso à parte na história da banda desenhada. Em Portugal, “O Papagaio” em 1936 foi a revista (editada pela Rádio Renascença) que primeiro internacionalizou a personagem, graças ao Padre Abel Varzim e a Adolfo Simões Müller. As revistas “Diabrete”, “Cavaleiro Andante”, “Foguetão”, “Zorro” e “Tintin” continuaram depois essa tradição pioneira. A história é conhecida, está contada e reporta-se à estada do Padre Varzim em Louvaina (1930-1934), onde estudava Sociologia. O “Petit Vingtième” era o suplemento juvenil do jornal católico belga “Le Vingtème Siècle”, dirigido pelo Padre Norbert Wallez, que o sacerdote português conhecia pessoalmente. Simões Müller, director de “O Papagaio”, foi alertado para a qualidade das aventuras de Tintim e assim apareceu “Tim-tim na América do Norte”. Foi a primeira tradução mundial e a primeira publicação a cores alguma vez feita das aventuras do repórter do “Petit Vingtième”… Mas vamos ao que importa, no dia 10 de Janeiro de 1929, há 80 anos, nasceu Tintim e quando, na Bélgica, foram lançadas as aventuras deste jornalista de idade indefinida, mas com vontade muito determinada, Hergé (Georges Remi) estava convencido de que a nova figura seria passageira e que talvez não tivesse vida longa. Surpreendentemente, o desenho impôs-se gradualmente por si e junto do público. E a verdade é que o autor teve a inteligência de abandonar o perfil amadorístico e incerto das primeiras produções, para passar a assumir, progressivamente, as marcas de uma nova escola e de uma nova arte. Nascia a “escola de Bruxelas” que viria a tornar-se inconfundível através da afirmação da “linha clara”, de que Hergé foi indiscutivelmente o chefe de fila. E a banda desenhada europeia ou as histórias de quadradinhos ganharam autonomia artística e de público.

RAZÕES DE SUCESSO 
Pode dizer-se, simplificando, que há dez razões para o sucesso de Tintim. Antes de mais a ideia de aventura. Tintim representa, de facto, a emergência da aventura em estado puro – ora não temendo ir ao encontro das situações mais complicadas, ora garantindo estar à altura dos acontecimentos, agindo e vencendo. Além da aventura, mas fazendo parte desta, deve referir-se ainda a importância da viagem. O mundo é percorrido pelo jovem repórter, e Tintim é um viajante incansável, desde o início – no País dos Sovietes,em África (Congo) e na América. E depois vêm o Egipto (“Os Charutos do Faraó”) e o fascínio do Oriente, em especial da China, e a adopção de uma nova técnica de pintura e de desenho que se baseia na antiga arte oriental. Tchang Tchong Jen, um dos jovens estudantes chineses que Hergé conhece em Bruxelas, exerce uma influência decisiva na evolução da nova arte, no sentido da maturidade. E é a técnica chinesa de desenho e de preenchimento de todos os espaços nos quadradinhos que torna a banda desenhada numa arte extremamente atraente, actual e com grandes virtualidades artísticas – já que relaciona intimamente as pessoas, as ideias e os lugares, desde o Médio Oriente à América do Sul, passando pela China e pela Índia, pela Europa Oriental (representada por dois países imaginários, Sildávia e Bordúria), com um desvio de rota que nos lava à Lua. Mas “O Lótus Azul” representa a viragem na obra de Hergé, porque apresenta em substância uma nova perspectiva no tratamento de um tema, fruto de maior rigor documental.
ELIXIR DE JUVENTUDE
Há ainda uma terceira razão de sucesso. Tintim representa a juventude (generosa e disponível) sem ter um discurso tradicional e moralista (apesar do começo…), com uma atitude alegre, aberta, capaz de entender a inovação e as diferenças. Trata-se de uma juventude de espírito e de atitude, que será caracterizada como indo dos 7 aos 77 anos. Por isso, Hergé fala de heroísmo, de coragem, de sinceridade, de malícia e de desembaraço… Mas se Tintim é jovem, usa a imaginação. Em cada aventura há novas ideias, novos ingredientes e uma quase loucura (saudável e inconformista) que o leva a arriscar tudo, generosamente. Aliás, não é possível fazer a história da pop-art sem referir Hergé, citado expressamente por Andy Warhol e Roy Lichtenstein. E quem fala de imaginação, terá de aludir à ligação íntima da banda desenhada ao cinema. Cada uma das pranchas e os respectivos quadradinhos têm um sentido e um ritmo propositadamente cinematográficos – desde os grandes planos ao uso dos balões para os diálogos, o campo e o contra-campo e, nos continuados, o corte das cenas para dar o “suspense” de uma semana para a outra. A história mistura-se com a técnica de ilustração, e essa simbiose vai ser característica da “escola da linha clara”. A partir de 1946, as reedições a cores das obras dos anos 30 vão ser marcadas pela ligação muito feliz entre uma narrativa palpitante e uma estética cuidada (que chegará ao seu auge em “Tintim no Tibete”, no final dos anos cinquenta, onde Hergé faz de novo a invocação do seu amigo Tchang, que perdera de vista, mas cujo contacto retomará). Refira-se ainda a participação fundamental, quanto ao cuidado formal, do desenhador e colorista Edgar P. Jacobs (o autor de Blake e Mortimer), responsável pela reapresentação a cores da obra de Hergé, e do argumentista Jacques Van Melkebeke, essencial na maturação dos enredos e nas referências históricas (por exemplo em “O Segredo do Licorne” e “O Tesouro de Rackham o Terrível”). A sexta razão de êxito tem a ver com o culto do ar puro, num sentido ecológico avant-la-lettre, que é uma das marcas de aventura de Tintim e dos seus companheiros. O sétimo motivo diz respeito à liberdade com sentido de justiça – como vários leitores têm insistido (António Mega Ferreira tem dado especial relevo, e muito bem, neste tema). De facto, há um essencial sentido de autonomia e liberdade de espírito e de ideias no herói de Hergé, o que é muito mais forte do que todas as tentativas de falar ou de insistir no suposto “colaboracionismo” do seu autor com o fascismo belga. Basta vermos o anti-racismo no caso de Tchang ou lermos com atenção todo o enredo de “O Ceptro de Otokar”, observando que o vilão se chama Müsstler, para percebermos que, apesar de qualquer cedência circunstancial, há na personagem Tintim marcas de liberdade, inconformismo, universalismo e cosmopolitismo. Para essa liberdade contribui ainda a ironia (oitavo motivo), sempre bem presente e capaz de fazer compreender melhor o mundo e os outros (Haddock, Girassol, o português inconfundível Oliveira da Figueira, etc. etc.). Por fim, a curiosidade resulta da convergência de um sentido geral de modernidade, segundo o qual nada do que é humano nos pode ser estranho (lembre-se, de novo, o lugar incontestável de Tintim na pop-art). Esse mesmo sentido de modernidade leva-nos ainda à compreensão da complexidade, que Hergé cultiva, ligando vida e mundo, razão e emoção, e projectando na sua obra angústias e dificuldades existenciais (que tinham a ver consigo), como em “Tintim no Tibete”… Benoît Peeters segue, a par e passo, o atribulado percurso de Hergé, o que nos permite compreender a personalidade deste, os seus dramas e o modo como se projectaram na figura de Tintim. E temos ainda a análise minuciosa das vicissitudes pós-guerra, por Hergé ter tido vasta colaboração no “Le Soir”, cabendo um papel fundamental a Raymond Leblanc, editor vindo da Resistência, na ilibação de Georges Remi quanto às acusações de colaboracionismo. Em suma, o rigor histórico dá-nos o “genoma mítico” de Tintim.


Guilherme d’Oliveira Martins




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