A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Há quatro séculos, nasceu em Lisboa D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), o autor dos celebradíssimos “Apólogos Dialogais” (publ. 1721) e do “Auto do Fidalgo Aprendiz” (publ. 1676), que segundo alguns inspirou Molière no seu “Le Bourgeois Gentilhomme”. Foi um dos grandes cultores da língua portuguesa, mas também da língua castelhana. No “século de ouro” dos Áustrias ombreou com Quevedo, e Menendez Pelayo considerou-o como referência fundamental – “o homem de mais engenho que produziu a Península no século XVII, depois de Quevedo”. É estranho, no entanto, que haja um tão grande silêncio em torno desta efeméride. Dir-se-ia que, passados os séculos, ainda continua a persistir uma incompreensível maldição em torno desta personalidade multifacetada e genial, cuja leitura e existência ainda hoje nos entusiasma e pode motivar.

 

A VIDA DOS LIVROS
de 24 a 30 de Novembro de 2008


Há quatro séculos, nasceu em Lisboa D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), o autor dos celebradíssimos “Apólogos Dialogais” (publ. 1721) e do “Auto do Fidalgo Aprendiz” (publ. 1676), que segundo alguns inspirou Molière no seu “Le Bourgeois Gentilhomme”. Foi um dos grandes cultores da língua portuguesa, mas também da língua castelhana. No “século de ouro” dos Áustrias ombreou com Quevedo, e Menendez Pelayo considerou-o como referência fundamental – “o homem de mais engenho que produziu a Península no século XVII, depois de Quevedo”. É estranho, no entanto, que haja um tão grande silêncio em torno desta efeméride. Dir-se-ia que, passados os séculos, ainda continua a persistir uma incompreensível maldição em torno desta personalidade multifacetada e genial, cuja leitura e existência ainda hoje nos entusiasma e pode motivar.



AUTOR PROLÍFERO DE VIDA ATRIBULADA 
Foi a 23 de Novembro de 1608 o nascimento de um dos grandes escritores da língua portuguesa. E se o adjectivo grande é sempre discutível, o certo é que não é possível compreender o século XVII peninsular sem ler Francisco Manuel de Melo, autor prolífero com uma vida atribuladíssima, bem ilustrativa de um tempo pleno de incertezas e vicissitudes. Lisboeta assumido, gozador da cidade e dos seus encantos, o autor das “Epanáforas de Vária História Portuguesa” nasceu na Calçada do Combro, sendo bisneto materno de Duarte Nunes do Leão. Ao percorrermos a capital encontramos muitas referências à sua presença: o Colégio de Santo Antão, onde foi aluno distinto de matemática, as Portas de Santa Catarina, onde arranjou sarilhos (e foi pela primeira vez preso) por ser exímio espadachim, o Castelo de S. Jorge e a Torre de Belém, onde esteve preso onze anos e a Quinta de Alcântara onde morreu (1666). Escritor de duas línguas ou de duas culturas, Portuguesa e Castelhana, foi nos dois campos um cultor de excepção e hoje, ao lê-lo, na poesia, no teatro, nas cartas, na prosa, tomamos consciência de que fez um retrato fiel, na forma e no fundo, do seu tempo – em que a União Pessoal de Portugal e Espanha nos fez partilhar o mesmo rei com o País vizinho ou em que a restauração de 1640 foi rodeada de movimentos contraditórios, de espionagem e intrigas, de que Francisco Manuel foi vítima e protagonista, para mal dos seus pecados e tantas vezes por imprudência e afoiteza. Foi militar e diplomata, acusado pelos dois lados de servir o outro. Olivares e D. João IV, ambos desconfiaram da sua fidelidade. Participou no século de ouro de Madrid, foi amigo de Quevedo, escreveu uma obra-prima da língua castelhana – “História dos Movimento e Separação da Catalunha”… Tudo isso construiu uma lenda que chegou até nós envolta em enigma e mistério. Contudo, a leitura do que escreveu e do que pensou eleva-se muito acima da mediania de um tempo de cultismos e conceptismos, a que por vezes D. Francisco Manuel de Melo cedeu, sem perder o talento fundamental da compreensão do sentido geral da História e dos acontecimentos.


UM ESTRANHO SILÊNCIO
Já o dissemos, passaram quatrocentos anos, um número redondíssimo, mas, para surpresa de muitos (em especial dos seus leitores fiéis), eis que um pesado silêncio parece ter caído sobre a efeméride. Invocam-se mil medianias e vulgaridades, mas do escritor que, no século XVII, foi com o Padre António Vieira uma referência inequívoca de maturidade da nossa prosa, fica a marca da ausência. De que se trata? De falta de memória histórica ou de excesso de lembrança, considerando que o escritor passou muitos anos da sua vida na prisão (e que Virgínia Rau designou como “prisão-purgatório do Castelo de Lisboa”), a contas com acusações, intrigas, más vontades e tudo o que se não possa imaginar, que o levou ao degredo de Salvador da Bahia, donde só veio depois da morte de D. João IV? A verdade é que essas atribulações não afectaram (antes enriqueceram) o que o escritor nos legou como testemunho do tempo. Será que foi o seu barroquismo que passou de moda, não interessando já os nossos contemporâneos? Puro engano, já que o estilo barroco, que F. M. M. usava, não escondia o classicismo fundamental que pôs a sua obra ao nosso alcance, com proveito e deleite – como acontece com os “Apólogos Dialogais”, obra de sucesso merecido, que nos permite usufruir de diálogos intemporais, cheios de fina ironia, em “Relógios Falantes”, “Escritório Avarento”, “Visita das Fontes” e “Hospital das Letras”. Como diria o relógio das Chagas: “todos somos relógios e sabemos que não há cousa que não tenha a sua hora no mundo; o rir, o chorar, o trabalho e o descanso, a fome e a fartura, tudo tem a sua hora: donde procede que não é fora da razão que os homens tratem talvez de seu cómodo e tal de seu adiantamento, pois é certo que para se regerem e dirigirem a bons fins e a termos úteis lhes deu Deus entendimento, que negou às alimárias”. De facto, o diálogo entre os relógios das Chagas e de Belas, da cidade e do campo não procuram outra coisa senão criticar ironicamente uma sociedade cheia de atavismos, contrastantes com os de tempos passados em que pelo menos havia uma aparência de glória.


O QUE ENCONTRAMOS NOS “APÓLOGOS DIALOGAIS”, como no “Fidalgo Aprendiz” é a ironia, a insinuação engraçada, a crítica leve, mas muito severa, a sátira de costumes. Assim como Rodrigues Lobo nos legou “A Corte na Aldeia”, também com sentido crítico e pedagógico, D. Francisco Manuel segue a mesma orientação. No “Escritório Avarento” acompanhamos quatro moedas, duas portuguesas e duas espanholas, e vemos atravessarem a sociedade toda, abastados e mendigos, virtuosos e ladrões, e é o retrato do tempo que encontramos. Na “Visita das Fontes”, a fonte velha do Rossio vai visitar a fonte velha do Terreiro do Paço e entre as duas, com a intervenção do soldado de sentinela e da estátua de Apolo desenvolve-se um diálogo sobre a vida, ilustrado por anexins populares. D. Francisco é, assim, um dos nossos escritores que leva mais à risca o dito latino “ridendo castigat mores”. A moral, a política, a religião, a literatura tudo é tema para estes retratos que merecem ser revisitados. E, no “Hospital das Letras”, num registo erudito e sofisticado, mas com o mesmo espírito, o autor vai dialogar com Justus Lipsius (hoje um dos símbolos da Europa), Bocalino e Quevedo, passando em revista os livros de uma Biblioteca transformada metaforicamente em hospital, com comentários sobre a literatura de dois séculos, o XVII e o XVI, com graça, mas com superficialidade. Dir-se-ia que nesse último apólogo houve maior cedência ao formalismo barroco e às fragilidades desse tempo. Já no caso do “Fidalgo Aprendiz”, temos de dizer que é uma das referências mais conhecidas da história do teatro português. Se é verdade que o Auto é anterior ao “Bourgeois Gentilhomme” de Molière, havendo indiscutivelmente influências comuns, deve ter acontecido que o dramaturgo francês foi influenciado (pelo menos em parte) por D. Francisco Manuel, mas o mais natural é que ambos, o português e o francês, tenham ido buscar inspiração a Pietro Aretino (1492-1556) na “Cortigiana”, num tema que Aristófanes também tratou nas “Nuvens” – o pelintra que se dá ares de grande senhor e que procura agir (recebendo lições de bem agir) para que o reconheçam numa qualidade que não tem. De facto, D. Francisco leu Aretino, Molière também, e ambos foram beber à mesma fonte, bem influente nesse tempo. No entanto, é bem possível que Molière tenha, entre os autores do século de ouro, conhecido o nosso Francisco Manuel.


QUANTO AO ESQUECIMENTO ACTUAL DE D. FRANCISCO, talvez se deva ao facto de ter sido escritor de duas culturas, mas tal não é razão, uma vez que muitos dos portugueses do século XVI também o foram. Não vale a pena, porém, tentar encontrar mais razões, uma vez que o que deve ser feito, está ao nosso alcance. Mais do que discursos ou do que fogos-fátuos, será aconselhável ir à estante e ler D. Francisco Manuel, irónico ou sisudo, mas crítico. Será esse o motivo do esquecimento? 


Guilherme d’Oliveira Martins



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