A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Luz e Sombras no Século XIX em Portugal” de António M. Machado Pires (INCM, 2007) é um conjunto de ensaios sobre a cultura portuguesa do final de oitocentos, a partir das referências intelectuais mais marcantes, em especial, da Geração de 70. A obra que, surpreendentemente, passou algo despercebida no momento em que saiu é de um extraordinário interesse não só pelas sínteses que apresenta, correspondentes a uma reflexão muito séria por parte de um dos nossos melhores especialistas na história da cultura portuguesa contemporânea, mas também pela ligação que procura fazer com o século XX e com as leituras actuais sobre a identidade portuguesa. Saliente-se, entre os textos agora dados à estampa, a publicação de “O ensino de Cultura Portuguesa (fundamentos de uma cadeira)”, texto da última lição de Machado Pires na Universidade dos Açores, que merece atentíssima leitura – onde se recorda a lição essencial de Vitorino Nemésio, para quem “Cultura” é “uma perspectiva convergente e unitária de vários ramos do saber”.

A VIDA DOS LIVROS
de 11 a 17 de Agosto de 2008


“Luz e Sombras no Século XIX em Portugal” de António M. Machado Pires (INCM, 2007) é um conjunto de ensaios sobre a cultura portuguesa do final de oitocentos, a partir das referências intelectuais mais marcantes, em especial, da Geração de 70. A obra que, surpreendentemente, passou algo despercebida no momento em que saiu é de um extraordinário interesse não só pelas sínteses que apresenta, correspondentes a uma reflexão muito séria por parte de um dos nossos melhores especialistas na história da cultura portuguesa contemporânea, mas também pela ligação que procura fazer com o século XX e com as leituras actuais sobre a identidade portuguesa. Saliente-se, entre os textos agora dados à estampa, a publicação de “O ensino de Cultura Portuguesa (fundamentos de uma cadeira)”, texto da última lição de Machado Pires na Universidade dos Açores, que merece atentíssima leitura – onde se recorda a lição essencial de Vitorino Nemésio, para quem “Cultura” é “uma perspectiva convergente e unitária de vários ramos do saber”.



Abel Manta, Largo de Camões em Lisboa, 1932.



A CULTURA COMO LIGAÇÃO
António M. Machado Pires recorda, aliás, a preocupação de Nemésio, com os seus alunos, em abrir as suas mentes a propósito da Cultura Portuguesa, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: «E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino? Ou o paralelo ou correspondência entre um anjo bochechudo e corado de um retábulo seiscentista e a mundivivência do barroco, ou a imagem nobre simbólico-poética de Pégaso, ao cavaleiro medieval (ética da cavalaria) até… ao cavaleiro tauromáquico português estilo Luís XV. Não é tudo a cultura simbolicamente aduzida pela imagem do cavalo? Não era Nemésio o autor dos poemas de O Cavalo Encantado?». Afinal, está bem presente nesta afirmação uma ideia de cultura como diálogo e confronto entre quem vê e tenta compreender e aquilo que se pretende ver e compreender. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada, e agora invocada. E Hernâni Cidade, António José Saraiva, Jorge Dias, Joel Serrão, José-Augusto França são recordados como exemplos de abridores de novas pistas entre a intuição e a inteligência, a erudição e a capacidade de entender o “mundo da vida” – porque, no fundo, reflectir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga colectiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que razão a perspectiva da Literatura é uma excelente varanda para avistar e compreender a Cultura, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a lógica de um poder ou do que a mera perspectiva de um saber. E mesmo que o autor tenha domínio (como foram os casos D. Dinis ou D. Duarte) a verdade é que ele comunica não pelo império, mas pela palavra e pelo sentimento. Compreenderemos plenamente o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério) ou Cesário (a cointradição dos sentimentos)? Mas há outras dimensões a não esquecer: a geografia de Orlando Ribeiro, as origens históricas em Damião Peres, as raízes mais remotas em Teófilo Braga e José Leite de Vasconcelos…


ENTRE O IDEALISMO E O RACIONALISMO
Para Machado Pires, as duas linhas de pensamento dominantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio têm de ser ambas consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois pólos têm de estar presentes na construção do “ser de Portugal” (para adaptar uma expressão de Lain Entralgo). A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado” caminhando a par (A. J. Saraiva), a construção de um imaginário, a experiência “madre de todas as cousas”, os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos de origem, de resistência ou predestinação, tudo isso nos permite tentar compreender quem somos e o que nos motiva e desafia. Daí termos de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. «“Cultura” não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O conjunto dos ensaios apresentados aponta, deste modo, no sentido da procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos. O fim do século, a transição, a análise da crise política, económica e social, Antero de Quental, Eça de Queirós (com Fradique Mendes, heterónimo colectivo de uma geração), Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga ocupam o pensamento e a reflexão de Machado Pires – que procura, como Jano, respostas para o enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro.


O DIFÍCIL CAMPO DOS PARADOXOS
Ao analisar as “raízes etnogénicas do Povo Português” no pensamento de Oliveira Martins (para quem a nossa individualidade “provém de uma dose maior de sangue céltico”, com o peso do messianismo), o autor aponta a força do paradoxo: “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino. Transporta a Moira grega para o drama da causalidade histórica”. E, chamando a atenção para o percurso de vida do escritor oitocentista, fala do pessimismo das suas análises, em contraste com o seu compromisso cívico: “foi, no entanto, também ministro da Fazenda, preconizando a criação de riqueza agrícola, do fomento rural, o aproveitamento das águas públicas, o repovoamento florestal, a nacionalização dos transportes, promulgando mesmo, nos poucos meses do seu governo, a reorganização das Alfandegas e da Fazenda, talvez acreditando ainda, como nos longínquos anos de 1868, no universalismo das comunicações, na grande federação dos homens livres, na imprensa, na locomotiva, na electricidade, na felicidade pelo Progresso Científico”. Ou seja, num momento em que, noa anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e em que o desastre parecia anunciar-se (o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime), o cidadão Oliveira Martins não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, claramente demarcado do fatalismo do atraso: “vemos como o seu amor à Pátria, à História e à dignidade do homem social nunca o abandonou e define com grandeza uma obra vasta e diversa que termina significativamente numa trilogia patriótica e na busca de arquétipos da excelência portuguesa”. Ao contrário de algumas considerações superficiais sobre a Geração de 70, Machado Pires procura demonstrar o carácter complexo do seu pensamento e do seu magistério, a atitude critica positiva orientada num sentido emancipador, a coerência fundamental, centrada nas preocupações ligadas à justiça e à coesão sociais, bem como à criação de condições concretas para pôr o coração do país a bater ao ritmo da civilização.
                                          Guilherme d’Oliveira Martins

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