A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“A Guerrilha Literária Eça de Queiroz – Camilo Castelo Branco” (Parceria A. M. Pereira, 2008) de A. Campos Matos corresponde à resposta a um desafio da editora a um dos nossos maiores cultores da memória queiroziana no sentido de tratar de um tema difícil mas ainda actual – a polémica entre os dois mais celebrados romancistas de oitocentos e os seus admiradores. Sendo certo que ainda hoje existem duas agremiações antagónicas e irredutíveis entre camilianos e queirozianos, não é menos verdade que muito poucos conhecem os termos exactos como se processaram as relações entre os dois autores, que pertenceram a duas gerações diferentes (separadas por vinte anos) e tiveram mil e um motivos para se travarem de razões.

A VIDA DOS LIVROS
De 4 a 10 de Agosto de 2008


“A Guerrilha Literária Eça de Queiroz – Camilo Castelo Branco” (Parceria A. M. Pereira, 2008) de A. Campos Matos corresponde à resposta a um desafio da editora a um dos nossos maiores cultores da memória queiroziana no sentido de tratar de um tema difícil mas ainda actual – a polémica entre os dois mais celebrados romancistas de oitocentos e os seus admiradores. Sendo certo que ainda hoje existem duas agremiações antagónicas e irredutíveis entre camilianos e queirozianos, não é menos verdade que muito poucos conhecem os termos exactos como se processaram as relações entre os dois autores, que pertenceram a duas gerações diferentes (separadas por vinte anos) e tiveram mil e um motivos para se travarem de razões.



POLÉMICA OU ESCARAMUÇA?
– O tema é aliciante e A. Campos Matos pega-lhe muito bem, ou não fosse um exímio conhecedor das duas vidas em causa e dos meandros de amizade e de famílias que estão envolvidos nesta história. Dir-se-á mesmo que se trata de uma novela entre romancistas. E a verdade é que deparamos à partida com todos os ingredientes para uma polémica intensa, mas, ao fim e ao cabo, verificamos que tudo não passou de escaramuças, limitadas por razões pessoais que limitaram um embate aberto entre os dois antagonistas. Camilo, em 1887, queixa-se: “eu nunca disse deste estimável escritor senão coisas bonitas e nunca lhas direi senão justas, segundo o meu sentimento de justiça. Não obstante, o Sr. Eça e alguns dos seus amigos, – que não podem festejá-lo a berros de entusiasmo sem incomodarem os vizinhos, e não sabem acariciar sem escoucear outros – sempre que lhes vem a talho de foice implicam comigo, assacando-me aleivosias”. De facto, nem Camilo morria de amores pela “escola nova”, nem Eça e os seus amigos deixavam de criticar severamente a mentalidade romântica (apesar de considerarem como mestres, Herculano e Garrett). Camilo, ao escrever “Eusébio Macário” e “A Corja”, fê-lo com sentido crítico, usando métodos dos novos, para demonstrar em que eles falhavam e como ele próprio usava melhor um instrumento alheio. Segundo Campos Matos, nos dois romances citados, “Camilo pratica (…) um sistemático, cansativo excesso de linguagem que nos aturde. De facto, a sua interpretação do realismo-naturalismo, nessas novelas, é muito redutora e limitada à exibição de temas escandalosos, ainda que a intenção caricatural, e até a intenção polémica, sejam predominantes”.


CAMILO NÃO ESQUECE
– A incompatibilidade de orientações e escolas não oferece dúvidas. Mas, como se disse já, havia outros factores poderosos que não deixavam de pesar. Com efeito, Camilo nunca esqueceria, ao longo da vida, o que ficou a dever ao magistrado Dr. José Maria Teixeira de Queiroz, pai de Eça, durante o complexo processo do adultério de Ana Plácido, que o levaria à prisão na Cadeia da Relação do Porto. Camilo fala, por isso, do pai do jovem romancista como “nosso honrado Queiroz” e “boníssimo Queiroz”. De facto, o magistrado ajudou-o muito, visitou-o na prisão, foi seu conselheiro quanto à estratégia do processo e, no final, declarou-se impedido para não ter de o julgar. Ora, se Camilo se queixa amiúde dos ataques e das diatribes literárias e se não esconde uma aversão às novas tendências, tem sempre a preocupação de não ferir a amizade e a gratidão relativamente ao velho pai de Eça, a quem tanto devia. Mas não pode esquecer-se que Camilo alinhou ao lado de António Feliciano de Castilho na “Questão Coimbrã” – dizendo ao patriarca: “a guerra faz-se à independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência”. Apesar de tudo, Eça, em Coimbra, não teve um papel de primeiro plano, tendo mesmo afirmado que o protesto de Antero fora moral, não literário.


CHOQUES COMPREENSÍVEIS
– Ao lermos “As Farpas”, vemos que Eça não poupa a receita romântica, de que Camilo era o primeiro símbolo: “O romance (…) não tem psicologia, nem drama, nem personagens”. Por outro lado, Camilo vai seguir com especial atenção as obras do jovem escritor de “O Crime do Padre Amaro”. Mas encontramos críticas e apreciações positivas. Aquilino diz mesmo: “No fundo Camilo admirava Eça”. O próprio mestre de Ceide diz a Maria Amália Vaz de Carvalho: “Essa escola que abriu o Eça de Queiroz vingará por dúzias de anos. Aquilo são fezes amassadas, mas a forma que ele lhes dá é atractiva”. (Lembremo-nos, entre parêntesis, o que Camilo disse do seu “Eusébio Macário”, que qualifica de “brincadeira”: “foi uma disenteria de todo o meu génio. Derramou-se-me o cérebro naquela dejecção, e não sou capaz de dar nem melhor nem pior que aquilo”). No fundo, Camilo, compreendeu bem que a nova tendência viera para ficar e tinha sucesso. Ao visconde de Ouguela diz mesmo: “Olha que eu não acho mau o vasconso dos realistas, a falar-te verdade… Os insultos que daí me têm vindo são papas de linhaça para as minhas intumescências biliosas”… Do lado de Eça não podemos esquecer, porém, o célebre diálogo do Hotel Central entre Alencar e Ega em “Os Maias”, onde o primeiro tem também traços de Camilo (e não só de Bulhão Pato). “Então Alencar refugiou-se na moralidade como numa rocha sólida. O naturalismo, com as suas aluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social?”. No entanto, se virmos bem, Camilo, apesar dos remoques e das recaídas, quis sempre libertar-se dessa imagem, graças à sua lucidez e inteligência crítica.

OS TEORES DA POLÉMICA
– Encontramos vários afloramentos das escaramuças em textos de Camilo e de Eça. Ambos não perdem oportunidade para se criticarem directa ou indirectamente, apesar de se reconhecerem mutuamente pelas suas forças e qualidades. Diferentes são, porém, os casos de Mariano Pina e Alexandre da Conceição, sobretudo o primeiro, que diz de Camilo o pior possível (“velho xexé de Entrudo, de rabicho e chavelho na bengala”, um “nojo completo e um sensaborão de marca”). Apesar de tudo, é o mesmo Pina quem dirá, surpreendentemente, depois da morte de Camilo, que “a mais elevada expressão da prosa portuguesa se achava consubstanciada nos livros de Camilo Castelo Branco”. Não podemos, assim, iludir a questão de que há realmente um choque de escolas, atenuado ou agravado pelos estilos pessoais. Fradique Mendes, nas “Cartas Inéditas”, também não poupa Camilo (“não alcançou jamais… o vigor, o relevo, a cor, a intensidade, a imagem, a vida, mesmo daqueles assuntos em que o Romancista, o Crítico e o Historiador se encontram”). E lembre-se o texto de 21 de Fevereiro de 1887 de Eça de Queiroz em “A Província” de Oliveira Martins com o título “Mr. Cumberland, sessão do grande adivinho, na redacção da Província”. É um texto hilariante, anónimo (mas da autoria de E.Q., segunda a revelação de Luís de Magalhães), em que se defrontam o escritor Camilo e o visconde Correia Botelho. As peripécias são várias e a dado passo, o visconde deixa cair o escritor num tinteiro, donde escorrem “obras de todas as cores, feitios e tamanhos…”. E, no fim, Camilo, “esvaído e diminuído”, brada: “Metam-me outra vez dentro do sr. Visconde! Só lá dentro estou bem!”. (Rafael Bordalo Pinheiro, no “António Maria”, em Julho de 1885, já desenhara algo de muito semelhante, a propósito do mesmíssimo tema…). Não se sabe se Camilo terá visto. É muito possível que sim, mas a verdade é que guardou de Conrado o prudente silêncio. Aliás, há uma história final de silêncios respeitosos (com uma carta de Eça que ficou por mandar) que tem muito que se lhe diga… A obra de Campos Matos é fundamental para compreender Camilo e Eça e o respectivo lugar cimeiro na cultura portuguesa. Sente-se a tensão permanente, mas também diálogo e influência mútuos que merecem mais atenção… 


Guilherme d´Oliveira Martins

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