A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Culture et Barbárie Européennes” (Bayard, 2005) de Edgar Morin é um livro constituído por três conferências proferidas na Biblioteca Nacional François Mitterrand de Paris sobre o fenómeno da barbárie no mundo contemporâneo, ao longo das quais o pensador fala dos perigos que nos espreitam, concluindo que “nada é irreversível e as condições democráticas humanistas devem sempre regenerar-se, sob pena de degenerarem. A democracia tem necessidade de se recriar em permanência. Daí que contribuir para regenerar o humanismo obrigue a pensar a barbárie. E por isso a resistir-lhe”. Mas, resistir à barbárie obriga a estarmos de sobreaviso, sem cair na tentação fácil de considerar que a liberdade e a democracia, a paz e a felicidade são realidades definitivamente adquiridas. Não são. E o certo é que a indiferença cívica, o egoísmo, o comodismo, o conformismo e o imediatismo podem dar origem a condições que conduzem à decadência.

A VIDA DOS LIVROS
De 28 de Abril a 4 de Maio de 2008


“Culture et Barbárie Européennes” (Bayard, 2005) de Edgar Morin é um livro constituído por três conferências proferidas na Biblioteca Nacional François Mitterrand de Paris sobre o fenómeno da barbárie no mundo contemporâneo, ao longo das quais o pensador fala dos perigos que nos espreitam, concluindo que “nada é irreversível e as condições democráticas humanistas devem sempre regenerar-se, sob pena de degenerarem. A democracia tem necessidade de se recriar em permanência. Daí que contribuir para regenerar o humanismo obrigue a pensar a barbárie. E por isso a resistir-lhe”. Mas, resistir à barbárie obriga a estarmos de sobreaviso, sem cair na tentação fácil de considerar que a liberdade e a democracia, a paz e a felicidade são realidades definitivamente adquiridas. Não são. E o certo é que a indiferença cívica, o egoísmo, o comodismo, o conformismo e o imediatismo podem dar origem a condições que conduzem à decadência.



Helena Vaz da Silva entre Edgar Morin et Jean-Louis Le Moigne
lors du Colloque du Centre National de la Culture du Portugal.
Sintra, Avril 2000 – Penser le Millenium avec Edgar Morin


CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE
“A barbárie não é apenas um elemento que acompanha a civilização, faz parte integrante desta”. O que está em causa é a conquista e a dominação, não podendo compreender-se a realidade social e humana sem entender a diversidade da sua vida. O humanismo europeu tem uma dupla origem que permite chegar à sua visão poliédrica. Enquanto Leslek Kolakowski salienta a fonte judaico-cristã, Jan Patocka preferia reforçar a raiz grega do humanismo europeu. Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e encarnou num ser humano, enquanto a herança ateniense afirma a autonomia do espírito humano e da sua racionalidade. O humanismo afirma-se, porém e a um tempo, dominador e fraternal. E a realidade humana comporta sempre estas duas facetas, que englobam o racional e o técnico, o mágico e o mítico. Mas Edgar Morin fala ainda da importância do sentido auto-crítico, cujas raízes encontra no pensamento judaico do marranismo. E assim deparamo-nos com duas ideias complexas na Europa ocidental: a de lugar de dominação e a de fonte de emancipação. A abertura de horizontes, a queda das fronteiras e a mundialização, a que assistimos, fazem-se a partir de uma paulatina tomada de consciência da dominação e da exigência de liberdade criadora. E a ideia de “Terra-Pátria” permite perceber as forças e as fragilidades da globalização. “Não é a mundialização da economia que devemos deplorar, mas o facto de esta não ser regulada institucionalmente”. O desenvolvimento técnico-económico produz a degradação da biosfera e esta induz a fragilização da civilização humana. A planetarização envolve, por sua vez, ambivalências e complexidades, o que obriga à procura de novos antídotos, isto é, de uma “política de civilização”, de modo a promover as qualidades da vida, para além do quantitativo e a “reinventar o humanismo”.


PROCURAR SAÍDAS
O totalitarismo, a dominação, a violência a que assistimos no século XX foram, assim, resultado da barbárie europeia, que a criação cultural não foi capaz de impedir ou de controlar. O certo é que o nazismo, o estalinismo, o anti-semitismo foram expressões de uma degeneração, que não pode ser compreendida com simplificações e abusivas generalizações. Auschwitz tem de ser visto em ligação com o Gulag – e “temos de desconfiar da barbárie mental”, que tende a fazer apreciações redutoras, limitadas e unilaterais. A barbárie tem de ser, pois, entendida sem falsificação – o seu “reconhecimento deve passar pelo conhecimento e pela consciência”. E urge lembrar também Hiroshima. Temos de perceber que é sempre possível pior. Por isso, “a consciência da barbárie deve integrar a consciência de que a Europa produz, pelo humanismo, o universalismo, o crescimento duma consciência planetária, os antídotos à sua própria barbárie”.


QUARENTA ANOS DEPOIS DE MAIO DE 68 
Numa entrevista dada há dias ao suplemento literário “Babélia” (El Pais, 19.4.08), Edgar Morin como que estende e prossegue o tema das conferências, noutro registo, a propósito das celebrações de Maio de 68. E fala, perante a memória da barbárie atenuada depois de trinta anos de progresso, das raízes libertárias do movimento, vindo dos Estados Unidos, e do descobrimento pelos jovens, através do rock e de um nova cultura popular, de uma vontade de autonomia, em contraponto a um processo de integração social baseado na especialização, na profissão e na moral burguesa. Há, assim, de Março a Maio, de Nanterre à Sorbona, um grande espontaneísmo inicial. No entanto, a tensão dominação / fraternidade depressa faz-se sentir: os pequenos grupos políticos trotskistas e maoístas, gradualmente, “assenhorearam-se do movimento e parasitaram-no”. Surge uma questão nova: poderá a revolução proletária ser feita pelos jovens estudantes? Para Morin, Maio de 68 teve duas fases: “um primeiro momento de espontaneidade, um impulso, que toda a população de Paris viu com simpatia”, “mas, quando começou a faltar a gasolina e chegaram os problemas de abastecimento, apareceu a angústia entre a população e rapidamente as pessoas viraram costas ao movimento estudantil”. Por um momento, juntavam-se as ideias antagónicas de fazer a Revolução (que vinha do século XIX) e de “mudar de vida”. No entanto, depressa se dissolveu esta última, que exigia a prosperidade, que foi posta em xeque a partir da crise económica de 1973. A perda da segurança do emprego passou a impedir o sonho. E assim acabou a ideia de que a sociedade industrial (a ocidente e a leste) poderia diminuir as desigualdades e resolver, por si e de uma vez, a pobreza, numa palavra, poderia criar a felicidade e a “vita buona”. Raymond Aron, nas suas “Dezoito Lições”, falara do tema, salientando a convergência e as diferenças… Deste modo o Maio de 1968 foi um sintoma que marcou o fim de um “sonho de felicidade”. Por um momento, houve a tomada de consciência do que Malraux designou como uma “crise de civilização”. O choque petrolífero, o desemprego, a estagflação, o fim das ilusões somavam-se ao “stress” das grandes cidades, à pressão da produtividade, à cronometrização, à desvalorização do papel da mulher, à desconsideração da ligação entre igualdade e diferença e à deterioração das condições de trabalho.


O QUE FICOU? 
“O certo é que houve uma certa liberalização dos costumes, e este é um dos aspectos mais interessantes de Maio de 1968”. Politicamente, assistiu-se a uma diminuição significativa da influência do Partido Comunista, até porque os comunistas nunca estiveram presentes no movimento e até o condenaram. Na fórmula feliz de Morin, os acontecimentos de Maio de 68 constituíram um “electro-choque”. No entanto, houve um tremendo equívoco. O movimento estudantil ocupou o lugar da classe operária, mas foram os sindicatos tradicionais os reais beneficiários desse impulso. E depois, De Gaulle aproveitou a saturação e o medo, e ganhou as eleições. Quatro décadas volvidas, Edgar Morin diz não saber o que pensa a juventude do que então se passou. “O acontecimento foi totalmente esquecido, escondido, por várias gerações”. Hoje, o fenómeno merece análise – o importante é que, quando ocorrem, estes episódios “conseguem que os jovens se politizem, entrem na polis, na sociedade política, no jogo da coisa pública”. E estes acontecimentos cíclicos e irrepetíveis são saudáveis. Resta saber se estamos perante um corolário ou um detonador que suscita mudanças profundas. E é a este propósito que Edgar Morin insiste na “política de civilização”. Afirmando-se como “dinossauro” das concepções universalistas, contra os particularismos fechados, mantém acesa a chama de um inconformismo capaz de valorizar a liberdade e a responsabilidade, a autonomia e a coesão social – verdadeiros antídotos contra a barbárie, de cujo risco e ameaça nunca estaremos livres.


E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença


Guilherme d’Oliveira Martins

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