A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

O número 21 da revista “Relâmpago” (Outubro de 2007, dir. Paulo Teixeira) insere um importante dossiê sobre Jorge de Sena (1919-1978), quando se completam, em Junho próximo, trinta anos depois do seu falecimento. Trata-se de uma justa invocação que a revista da Fundação Luís Miguel Nava faz com o objectivo de recordar um dos grandes poetas portugueses que, no século XX, teve “um pensamento forte acerca do fenómeno poético”, num momento “em que parece acentuar-se uma espécie de comprazido e confortável conformismo em relação ao que alguns entendem ser uma perda de importância da poesia no espaço público”. Ora, quem conhece a obra e a personalidade de Sena, sabe bem que a necessidade de combater a tendência para a acomodação esteve sempre na primeira linha das preocupações do poeta e ensaísta. Daí que a fidelidade a esse espírito mereça atenção.

A VIDA DOS LIVROS
De 21 a 27 de Abril de 2008.



O número 21 da revista “Relâmpago” (Outubro de 2007, dir. Paulo Teixeira) insere um importante dossiê sobre Jorge de Sena (1919-1978), quando se completam, em Junho próximo, trinta anos depois do seu falecimento. Trata-se de uma justa invocação que a revista da Fundação Luís Miguel Nava faz com o objectivo de recordar um dos grandes poetas portugueses que, no século XX, teve “um pensamento forte acerca do fenómeno poético”, num momento “em que parece acentuar-se uma espécie de comprazido e confortável conformismo em relação ao que alguns entendem ser uma perda de importância da poesia no espaço público”. Ora, quem conhece a obra e a personalidade de Sena, sabe bem que a necessidade de combater a tendência para a acomodação esteve sempre na primeira linha das preocupações do poeta e ensaísta. Daí que a fidelidade a esse espírito mereça atenção.


 


OBRA INCLASSIFICÁVEL
Eduardo Lourenço afirma que “o seu individualismo exacerbado, a sua vasta cultura, afastaram-no de todo o alistamento ideológico de perfil totalitário. Jorge de Sena foi, em todas as suas criações, sobretudo um poeta, aliado a um crítico, cuja finalidade foi a de confundir, num único impulso, a exigência criadora e a mais radical liberdade, penhor único do que mais lhe importava, a plena assunção da dignidade humana”. Esta é uma síntese que retrata bem o autor de “Perseguição”, e que permite perceber alguns dos seus repentes, para muita gente pouco compreensíveis, pela irredutibilidade e contundência que usava. De qualquer modo, o que sempre encontramos em Jorge de Sena é a ligação entre o rigor e a exigência, entre a autonomia e a liberdade (de que toda a sua obra é apanágio), com uma forte vontade de justiça e o empenhamento num combate sem tréguas contra videirinhos e medíocres. O sentimentalismo (não confundível com sentimento) não faz parte do seu modo de ver o mundo e, por isso, na poesia, preferiu ser provocante e áspero, apesar de revelar grande sensibilidade artística e um assinalável sentido espiritual, com uma profundidade que muito poucos alcançaram.

UMA AMARGA PERCEPÇÃO
Em Sena nota-se a forte influência de Camões, poeta cuja obra estudou com grande competência e argúcia (como fica claro no ensaio de Margarida Braga Neves). “Camões é, de facto, inesgotável (di-lo o poeta); não só por ser grande como tantos outros, mas por ter sido, imparmente, o poeta da própria essência da vida humana, do próprio drama do fluir do pensamento humano. Aí reside a sua originalidade; aí está o seu mérito de ser um dos mais excepcionais poetas de todos os tempos”. Mas, para além da influência renascentista, no pensamento moderno, sentem-se na obra seniana os ecos de Nietzsche, dos seus paradoxos e contradições, bem como de Leão Chestov (que recusava “deixar-se prender nas malhas necessariamente racionais e lógicas de um pensamento que se pretende senhor de si próprio…”). Gastão Cruz lembra, aliás, que “Jorge de Sena tinha a amarga percepção, obviamente fundada, de que muito pouca gente em Portugal lê poesia com o cuidado, a atenção e a inteligência que ela requer”. E esta afirmação, aparentemente paradoxal num país (erroneamente) dito de poetas, tem razão de ser, não apenas para o próprio Sena, mas para muitos dos nossos mais importantes poetas (como Cesário e Pessoa). E eis-nos perante a indignação contra a indiferença e a desatenção. Afinal, a dificuldade, a erudição, o trabalho intenso de depuração, se são vistos por muitos como (falsos) entraves à genuinidade, a verdade é que são sinais e indícios de maturidade. E não é por acaso que numa das epígrafes incluídas no livro “Fidelidade” (1958) consta a afirmação de Matias Aires: “A arte leva consigo uma espécie de rudeza”. E essa rudeza não é mais do que busca do essencial e de capacidade criadora. E a “modernidade será (…) o nome que damos a essa permanente vontade e capacidade de renovar e de experimentar que sempre acompanhou a criação artística”, na bela síntese de Gastão Cruz.

APENAS LEMBRAR 
Os testemunhos que encontramos revelam uma excepcional personalidade, que à medida que o tempo corre, aparece com maior relevância. António Cândido recorda: “Bastava conversar algum tempo com Jorge de Sena para perceber as sua fagulhas de genialidade”. Fernando J. B. Martinho insiste certeiramente em que “Sena continua a ser lido, discutido, quiçá a incomodar como sempre gostou de fazer”. Fernando Lemos lembra: “Era um homem valente. Mas quem o não tolerava preferia ignorar a sua insolente sabedoria e chamá-la de raiva expressiva”. Frederick Williams, aluno em Wisconsin, faz o melhor elogio que se pode fazer a um mestre – aproximava a erudição da sala de aula, naturalmente e sem cedências. João Bénard da Costa invoca o que escreveu há quarenta anos: “era tempo e mais que tempo que alguém” prestasse a homenagem a que o intelectual tinha direito, “dentre aqueles que sabem ler e têm o privilégio de ser contemporâneos de Jorge de Sena”. Joaquim-Francisco Coelho pergunta: “E a alma, onde andará agora nua e resplandecente, a alma do poeta-engenheiro da ‘Visão Perpétua’?”. José-Augusto França, por sua vez, diz, peremptório e certeiro: “em termos de apreciação crítica, Pessoa e Sena me parecem os dois maiores poetas portugueses do século”. E, com inteira justificação, refere o papel incansável de Mécia de Sena, “companheira, motor, apoio da vida que teve e da obra que realizou e perdura editorialmente muito graças a ela”. E Pedro Tamen sintetiza: «o resumo é fácil de fazer: os detractores, claros ou encapotados, tinham inveja. Sena era impaciente e tinha mau feitio. Cometeu, sem dúvida injustiças; mas, se o fez, foi por não ter pachorra para a mediocridade. Para o ‘reino da estupidez’. É que Jorge de Sena ‘era superior mesmo’». E os testemunhos confirmam-no plenamente.

COMPREENDER, SÓ LENDO… 
Jorge de Sena gostava, assim, de inquietar e de ser inquietante. Por isso, o seu alter-ego construiu-o no “Físico Prodigioso”, por isso se encarregou de descobrir e analisar contra-mitos, desde o “Indesejado” (um D. António, Prior do Crato, que não tinha Quinto Império para propor), até ao Epimeteu em vez de Prometeu. “A tragédia de uma consciência nacional lutando contra a abstracção (a sujeição) crescente do seu destino é a sua mesma tragédia”. Jorge Fazenda Lourenço tem falado, nessa perspectiva, de uma “procurada atenção contra os ‘mitos’ estabelecidos, o que também não deve confundir-se com uma qualquer atitude anti-mitológica, que nela não existe e nele seria um contra-senso”. Leia-se “Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos” e entenda-se a busca da dignidade no registo da imprecação profética (“Podereis roubar-me tudo: / As ideias, as palavras, as imagens…”). E, longe das simplificações, Jorge de Sena afirma, sentidamente, que “De morte natural nunca ninguém morreu”, para nos dizer, afinal, que “A morte é natural na natureza. Mas / nós somos o que nega a natureza”. No fundo, são a autonomia individual, a liberdade e a responsabilidade que preocupam o poeta e o ensaísta. Homens, deuses e Deus interrogam-se e constroem-se mutuamente, a partir da nossa própria visão humana, necessariamente unilateral e do nosso próprio papel. E, como Fernando Pinto do Amaral bem salienta, na conclusão do seu ensaio, sentimos que a procura fundamental de Jorge de Sena confronta-se com uma treva omnipresente que obceca e perturba (“no imo dessa noite de que somos feitos”). E então, voltamos ao poeta, ouvindo a sua voz timbrada e clara: “Uma pequenina luz bruxuleante / (…) / brilhando incerta mas brilhando / (…) / Uma pequena luz / que vacila exacta / que bruxuleia firme / que não ilumina apenas brilha. / (…) Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha…”.
                                                           Guilherme d’Oliveira Martins

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