A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Miguel Real acaba de dar à estampa uma pequena obra com um título enigmático – “A Morte de Portugal” (Campo das Letras, 2007), que merece uma leitura ponderada, atenta e crítica. Na senda de Eduardo Lourenço e da genealogia intelectual em que este se insere, o livro analisa quatro tempos portugueses: o do exemplo, o do povo eleito, o da humilhação e o da mediocridade. E é em torno destas quatro referências da ciclotimia nacional que Miguel Real desenvolve o tema do que poderemos designar como uma certa morte de Portugal que, como desafio e provocação, o autor propõe.


A VIDA DOS LIVROS
De 31 de Dezembro de 2007 a 6 de Janeiro de 2008.


Miguel Real acaba de dar à estampa uma pequena obra com um título enigmático – “A Morte de Portugal” (Campo das Letras, 2007), que merece uma leitura ponderada, atenta e crítica. Na senda de Eduardo Lourenço e da genealogia intelectual em que este se insere, o livro analisa quatro tempos portugueses: o do exemplo, o do povo eleito, o da humilhação e o da mediocridade. E é em torno destas quatro referências da ciclotimia nacional que Miguel Real desenvolve o tema do que poderemos designar como uma certa morte de Portugal que, como desafio e provocação, o autor propõe.


 
Desenho de Almada Negreiros.


COMEÇANDO PELO FIM. – Segundo a confissão do próprio ensaísta, do que se trata é de intentar a demonstração de que “a constelação cultural e civilizacional por que emergiu a realidade histórica designada por ‘Portugal’, enquadrada em quatro complexos culturais (…), atingiu o seu limite de esgotamento – menos por efeito de um decadentismo político (temos vivido em permanente decadência desde D. João III) e mais por causa de um fenómeno de aceleradíssima descristianização e desumanização ética da sociedade e de uma rapidíssima submersão social numa tecnocracia científica anónima que nivela as nações, metamorfoseando-as em regiões singulares de uma futura supranacionalidade europeia, comandada por títeres janotas que transfiguram a nobre arte da política numa cinzenta cadeia técnica de raciocínios causais – e está a chegar ao fim”. Este é, no fundo, o tema proposto, o de saber se e de que modo Portugal, como identidade e vocação que conhecemos, chega ao termo do paradigma da nação. O tema é difícil e não deve ser visto a partir de estados de alma, deve sê-lo serenamente, considerando as grandes tendências do presente histórico e as saídas possíveis.


AS QUATRO FIGURAÇÕES. – Para Miguel Real, o primeiro tempo corresponde à “origem exemplar”, à figuração da origem de Portugal, identificada no século XVI com a figura de Viriato, invocação heróica de vontade e resistência, de fidelidade e de coragem (“Ouves, Viriato, o estrago / que cá vasi nos teus costumes” – disse Sá de Miranda); o segundo é o da “nação superior”, onde convergem o providencialismo e o milenarismo judaico, que o Padre António Vieira faz identificar com o Quinto Império, de índole espiritual e cultural, para responder à decadência, como no exemplo bíblico de Daniel; o terceiro momento é o da “nação inferior”, ligado ao que o ensaísta designa como complexo pombalino – “que eleva a Europa a destino e sentido de Portugal”, numa perspectiva burocrática e apenas economicista; e o quarto é designado como do “canibalismo cultural”, centrado na submissão e na inveja, ingredientes do reino cadaveroso de António Sérgio e do reino da estupidez de Jorge de Sena. Mas estes complexos culturais, para Miguel Real, não são cronológicos, são sincrónicos: “por efeito do ambiente educacional e social, cada português percorre na sua vida, recorrente e ciclicamente, estas quatro figurações da história e cultura pátrias”.


QUE LIBERTAÇÃO? – Demarcando-se do primado tecnológico, o autor prefere a elevação de “cada cidadão a um exigente patamar de conhecimento humanista e cívico que, por arrasto, geraria inevitavelmente o desejado choque tecnológico”. Trata-se de fazer prevalecer os fins em relação aos meios. Por isso critica a inversão de valores, do desumanismo técnico em lugar do primado da cultura. O tema é historicamente recorrente e obriga a cautelas muito especiais no seu tratamento, a fim de que não haja a tentação da fuga à realidade que é um outro modo de inverter os valores, em que uma tradição formal e desenraizada toma o lugar da cultura criadora e da liberdade emancipatória. Eis o dilema que nos acompanha. E Miguel Real tem razão quando nos põe de sobreaviso relativamente às simplificações. Daí dizer-nos que a “morte de Portugal” não significa que desapareçamos, mas sim, porventura, que nos transformemos numa das “inúmeras regiões singulares da Europa”. Poderá ser que assim aconteça, tudo estará, porém, em saber como respondemos ao novo desafio, se acomodando-nos, se propondo-nos trabalhar numa nova síntese, capaz de ligar a raiz espiritual e a aspiração ao desenvolvimento. Como o autor bem sabe (e di-lo, expressamente, ao fechar o texto inicial da obra) tenho pessoalmente muito poucas certezas sobre esse ponto. As sociedades modernas vão gerar dinâmicas complexas envolvendo o local, o nacional e o supranacional e as realidades artificiais de uma globalização técnica não farão desaparecer a pluralidade das pertenças e a exigência da coesão social de dimensão adequada. Por isso, o fatalismo do atraso e da harmonização (ou da indiferença) deverão ser contrariados activamente. Herculano e Garrett, Antero e a sua geração, Sérgio, Cortesão e Proença, a Águia, o Orpheu e a Presença, o melhor pluralismo do último quartel do século XX legaram-nos vontade, tradição, liberdade, evolução, humanismo e futuro – ingredientes indispensáveis para recusar o atraso. Eis o ponto fundamental da reflexão que “A Morte de Portugal” suscita.


A DIFICULDADE DA SÍNTESE. – O complexo pombalino preocupa Miguel Real. O seu carácter de importação artificial de um modelo gera o contrário do desejado. Por excesso de razão suscita-se o fanatismo, por ânsia de progresso rápido faz-se quase tudo voltar às raízes do atraso. Mas onde estará o mal? Afinal, não foi sempre a nossa história feita de abertura aos outros e de recepção do contributo dos outros. Demo-nos sempre mal com o fechamento. E se o ensaísta tem razão em criticar o modismo europeu, como uma recepção passiva, ou o mimetismo americano, como a emergência da passividade e da indiferença, não podemos deixar de invocar Eduardo Lourenço quando fala de um “europeísmo” diferente, capaz de inserir a compreensão do que somos e do que desejamos ser. E devemos ouvir de novo Herculano apelando à vontade. Temos de seguir os homens de Setenta a dizer que o atraso tem de ser combatido activamente, por nós. Não podemos resignar-nos a que vençam os medíocres ou o país em diminutivo. O país apenas morrerá de facto se a acomodação vencer, e se não houver o escol apto a orientar e a mobilizar. Temos de distinguir a metáfora e a realidade: a morte do Portugal velho é algo que se mantém actual, mas, como diz e bem, Miguel Real, importa que esse transe se faça lembrando que não podemos fazer tábua rasa da realidade, sob pena de fazermos regressar o fanatismo e o atraso. “Os homens-cultos” (e também a Mátria, como diria certeiramente Natália), “esses permanecem, recriando a nova imagem literária, estética e cultural por que Portugal posteriormente se reverá no espelho da História”.


A SEGUNDA MORTE DE SEBASTIÃO. – Portugal reviverá no confronto, na abertura à multiplicidade, na reprodução da atitude psicológica, cultural e civilizacional dos momentos maiores da nossa história. A “morte” tem de ser vista como possibilidade de “redenção”. Assim, o disseram os nossos melhores, e não foram compreendidos. E aqui não se trata de um optimismo despropositado, mas da compreensão do que fizemos desde D. Dinis ao Príncipe Perfeito, em persistência, em organização, em capacidade de incorporar o melhor espírito e técnica europeus, para dar o salto do humanismo universalista. O sebastianismo, temos de o entender, é a prova póstuma da nossa identidade, e temos de o exorcizar. Em bom rigor, depois de termos regressado ao rincão, depois de setenta e quatro, voltámos a partir, e continuaremos a partir, e essa será a nossa vida, de portugueses, mas também das culturas e dos povos da língua portuguesa, que ultrapassam em muito as nossas fronteiras. Eis porque é difícil (talvez impossível) falar de morte de Portugal, quando Portugal não é simplificável. A metáfora atrai-nos, mas é o melhor desafio a desmenti-la…


E ouça aqui as minhas sugestões na Renascença
                                                                                     Guilherme d’Oliveira Martins

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