A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Geografia” de Sophia de Mello Breyner Andresen (Ática, 1ª ed. 1967, 2ª ed. 1972) é uma obra referencial da autora, que abre significativamente com uma citação de Novalis – “A poesia é o autentico real / Absoluto. Isto é o cerne da / Minha filosofia. / Quanto mais poético, mais verdadeiro”. Com justiça, os críticos consideram os poemas aqui inseridos como dos mais significativos no percurso da autora. Sente-se a maturidade e uma ligação muito especial à magia das pessoas, das palavras e dos lugares, do sol e do sul – “A luz me liga ao mar como a meu rosto / Nem a linha das águas me divide”…


A VIDA DOS LIVROS
De 24 a 30 de Dezembro de 2007


“Geografia” de Sophia de Mello Breyner Andresen (Ática, 1ª ed. 1967, 2ª ed. 1972) é uma obra referencial da autora, que abre significativamente com uma citação de Novalis – “A poesia é o autentico real / Absoluto. Isto é o cerne da / Minha filosofia. / Quanto mais poético, mais verdadeiro”. Com justiça, os críticos consideram os poemas aqui inseridos como dos mais significativos no percurso da autora. Sente-se a maturidade e uma ligação muito especial à magia das pessoas, das palavras e dos lugares, do sol e do sul – “A luz me liga ao mar como a meu rosto / Nem a linha das águas me divide”…





ARTE POÉTICA – “A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas apenas o rosto, a forma, o sinal duma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo duma beleza estética, mas sim duma beleza poética”. A propósito de uma simples ânfora, do seu equilíbrio e da sua beleza, Sophia fala de uma “aliança entre mim e o sol”, de “paz e alegria” e do “deslumbramento de estar no mundo”, numa “religação” poética que nos leva à verdade interrogada por Novalis. Por uma insistente busca de unidade e de coerência, eis que a ânfora se torna, para Sophia, “a nova imagem da minha aliança com as coisas”, a partir dum gesto banal e da visita a uma loja de barros. No entanto, essa aliança está ameaçada a cada passo – porque o que está em causa é um “reino vulnerável” – visto como “companheiro mortal da imortalidade”… A poesia é, no fundo, a “arte do ser” – “por isso o poema não fala de uma vida ideal, mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão”. E o artista tem de ser visto e compreendido como “artesão duma linguagem”, não como manipulador de matéria, pois o artesanato das palavras nasce da própria poesia, à “qual está consubstancialmente unido”. De facto, as palavras são escolhidas “pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança”. O mundo da palavra procura, assim, o equilíbrio dos momentos e da sua expressão, e obriga ao reconhecimento do caminho, do reino e da vida… Sophia clarifica, por isso, o que considera ser a compreensão poética. E ao longo de “Geografia” demonstra com exemplos concretos, como a poesia é arte do ser e da dignidade.

SERENIDADE ÉTICA – “Eu me perdi na sordidez dum mundo / Onde era preciso ser / Polícia agiota fariseu / Ou cocote. / Eu me perdi na sordidez do mundo / Eu me salvei na limpidez da terra. / Eu me busquei no vento e me encontrei no mar / E nunca / Um navio da costa se afastou / Sem me levar”. A vida é feita de sentimentos contrastados e de paradoxos pouco compreensíveis. O equilíbrio é procurado numa floresta de enganos, entre a sordidez e a salvação. E, ao lermos o percurso poético aqui apresentado, percebemos que há uma inquietação evidente, aliás já sentida claramente desde “Mar Novo”. Perante a sociedade concreta e os seus problemas, perante as pessoas e as suas angústias, sente-se uma poética do inconformismo que marca a serenidade e a exigência ética. Em “Velório Rico”, “os herdeiros inquietos” “atormentam o ar com os seus pecados”, em “O Filho Pródigo”, “dispersaste as tuas forças contra os enganos da terra”, mas, em contraponto, a “antiga casa” “permanece presente como um reino / E atravessa os meus sonhos como um rio”. O inconformismo significa não se acomodar, cuidar do outro, olhar para diante. E procurar compreender, vendo, ouvindo: “esta gente cujo rosto / Às vezes luminoso / E outras vezes tosco / Ora me lembra escravos / Ora me lembra reis”. E no culto das palavras, das ideias e das causas, numa coerência perturbante e profética, podemos ler: “Meu canto se renova / E recomeço a busca / Dum país liberto / Duma vida limpa / E dum tempo justo”.


A LEVEZA DAS IDEIAS. – Num poema muito citado dedicado a Helena Lanari, sentimos o amor muito especial ao Brasil e ao português do “outro lado do mar”: “Gosto de ouvir o português do Brasil / onde as palavras recuperam a sua substância total”. E se bem virmos, nesta declaração de amor há todo um programa de vida. Do que se trata é de encontrar a melhor maneira de exprimir, com o coração, uma língua capaz de unir gentes e esperanças. “Quando Helena Lanari dizia ‘coqueiro’ / O coqueiro ficava muito mais vegetal”. A propósito de Manuel Bandeira, sentimos também essa procura de elos fortes de afecto e de amor. “Estes poemas caminharam comigo como a brisa / Nos passeados campos da minha juventude / Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro / E foram parte do tempo respirado”. E Cecília Meireles é recordada como “Cecília – cinza / As palavras no meio do mar permanecem enxutas”. Enquanto a ecuménica Brasília, de Lúcio Costa, Óscar Niemayer e Pitágoras, é apresentada e glorificada como o resultado de um casamento de lógica e lírica, grega e brasileira, “propondo aos homens de todas as raças / A essência universal das formas justas”. “Atena ergueu a sua cidade ordenada e clara como um pensamento”…OS MEUS PASSOS – “Os meus passos escutam o chão enquanto a alegria do encontro me desaltera e sacia. O meu reino é meu como um vestido que serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu recomeço o mundo”. Que é, afinal, a criação senão esse retorno à criação, como “recomeço do mundo”? Sente-se em cada linha a interrogação essencial da arte poética, a partir dos gestos concretos e quotidianos, e daí parte-se para a construção do mundo e da vida. E a relação com os outros torna-se a chave de toda a revelação necessária: “Uma terrível atroz imensa / desonestidade / Cobre a cidade / Há um murmúrio de combinações / Uma telegrafia / Sem gestos sem sinais sem fios / O mal procura o mal e ambos se entendem / Compram e vendem / E com um sabor a coisa morta / A cidade dos outros / Bate à nossa porta”. Sophia interroga e aponta os vários sinais do mundo, procurando entendê-los na naturalidade da vida. Modernos e clássicos, visitantes e visitados encontram-se em busca da chave dos mistérios, dos diversos mistérios por desvendar: “Aqui despi meu vestido de exílio / E sacudi de meus passos a poeira do desencontro”… E é também aqui que ouvimos o que emblematicamente pode caracterizar Sophia: “Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência / No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios / Mas sufocado sonho / E não sabemos bem que coisa são os sonhos / Condutores silenciosos canto surdo / Que um dia subitamente emergem / No grande pátio liso dos desastres”.


DUAS PALAVRAS FINAIS. – Depois de lermos “Geografia” fica-nos a sensação de serenidade e de leveza, mas também de rigor e determinação. E nessa lembrança essencial, ouvimos com muita nitidez: “Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro / Sabendo que o real o mostrará”. Diante dessas folhas caídas, lembramos hoje, além da memória de Sophia, duas personalidades há pouco desaparecidas, bem diferentes, que muito fizeram em prol da nossa cultura. Refiro-me a Solange Parveaux (1933-2007), estudiosa da língua e da cultura portuguesas e militante dessas duas causas, a quem o ensino do português em França muito deve, e ao pintor Nuno de Siqueira (1929-2007), também agora desaparecido, que teve um papel importante na procura de novos caminhos e de novas referências na pintura portuguesa. Não os podemos esquecer, a ambos, uma vez que o seu trabalho e a sua intervenção cultural e artística marcaram as áreas em que se moveram. As palavras e o tempo estiveram nos seus horizontes. Lidaram, por isso, com a realidade das pessoas, das ideias e das formas. “Altas marés no tumulto me ressoam / E paredes de silêncio me reflectem”. Bom Natal!
                                                               Guilherme d’Oliveira Martins


 


 


 

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