A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo” é uma colectânea de textos organizada por Anselmo Borges (Campo das Letras, 2007) de grande interesse e qualidade. Reúne comunicações ao Congresso Internacional com o mesmo título realizado no Seminário da Boa Nova, Valadares, de 8 a 11 de Setembro de 2005, no âmbito das comemorações do 75º Aniversário da Sociedade Missionária Portuguesa. Apenas um texto, da autoria do dominicano Eduardo Schillebeeckx, não foi apresentado nessa iniciativa, mas foi incluído no livro em boa hora, dada a sua importância fundamental.

A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de Dezembro de 2007



“Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo” é uma colectânea de textos organizada por Anselmo Borges (Campo das Letras, 2007) de grande interesse e qualidade. Reúne comunicações ao Congresso Internacional com o mesmo título realizado no Seminário da Boa Nova, Valadares, de 8 a 11 de Setembro de 2005, no âmbito das comemorações do 75º Aniversário da Sociedade Missionária Portuguesa. Apenas um texto, da autoria do dominicano Eduardo Schillebeeckx, não foi apresentado nessa iniciativa, mas foi incluído no livro em boa hora, dada a sua importância fundamental.


   


Notre Dame du Haut, Ronchamps, Le Corbusier.


UMA SOCIEDADE DIFERENTE – Como lembra Anselmo Borges, há mudanças fundamentais na sociedade contemporânea que obrigam a respostas humanas adequadas às novas circunstâncias. A cibercultura, a sociedade da rede, a necessidade de uma comunidade humana comunicante e democrática, a governança da sociedade global exigem uma atenção e um cuidado redobrados no sentido do reconhecimento de uma humanidade universal. No fundo, voltamos a ter de lembrar as conclusões actualíssimas da luminosa encíclica de João XXIII “Pacem in Terris”. É de uma cultura de paz que temos de falar – a partir do confronto entre o desígnio da igualdade e o respeito das diferenças. Com efeito, Deus e a humanidade encontram-se a cada passo e temos de tirar desse facto as devidas consequências. “A pequena aldeia global será cada vez mais multipolar. É urgência maior para todos cuidar da casa comum – a Terra e o ambiente -, vinculando ecologia, economia e ética (note-se a ligação entre oikos e ethos, que significam casa, habitação, na raiz da ecologia – o tratado da casa -, economia – a lei da casa – e ética – a morada autêntica), na salvaguarda dos Direitos do Homem – homem e mulher -, em cuja Declaração é preciso incluir o direito a não ser pobre – porque não há-de a pobreza ser declarada ilegal, como o foi, por exemplo o apartheid?”. É o organizador da obra quem o diz, abrindo a reflexão sobre o fenómeno religioso a partir da pessoa e da sua dignidade.


DESAFIOS À HUMANIDADE E AO CRISTIANISMO. – Antes do mais, põe-se a questão de Deus, como fonte de valores e como raiz do sentido. “A questão de Deus enquanto questão é concretamente o fundamento da dignidade humana”. E é a essa luz que surge o diálogo inter-religioso, não como um lugar vago e indeterminado, mas como um ponto de reconhecimento e de respeito mútuo. Como afirma Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos global, sem um ethos mundial”. E esse diálogo faz-se no âmbito da liberdade religiosa, que significa respeito pelas diversas crenças e pela liberdade de não se ter religião: E “deste diálogo fazem parte também os ateus, pois são eles que permanentemente advertem os crentes para o perigo da idolatria e da desumanidade – e a idolatria é pior que o ateísmo”. Torna-se indispensável reler e reinterpretar as categorias religiosas fundamentais, desde a liberdade e a autonomia, até à oração e à revelação. Daí a crescente importância das relações entre fé e razão e entre razão e religião, na linha do diálogo promovido pela Academia Católica da Baviera entre Ratzinger e Habermas (2004), no qual ambos concluíram pela necessidade de “depuração e regeneração” recíprocos, de modo que os pólos da fé e da razão se enriqueçam mutuamente e se complementem. E temos de estar de sobreaviso relativamente à difusão da indiferença, do relativismo, do consumismo e do hedonismo. Essas vias de fechamento só podem conduzir à inanição da humanidade, sob a capa de uma (falsa) espiritualidade. Daí que Bento XVI tenha advertido “para o perigo de confundir a religião com mais um artigo de consumo”. Há que aproximar as pessoas e que suscitar a responsabilidade. Daí o desafio da liberdade e da descentralização, num tempo de dar autonomia às jovens Igrejas de África, da América latina e da Ásia. Como diria Jean Cardonnel, há que “evangelizar Deus” e que “desromanizar a Igreja”…


PARA ONDE VAMOS? – José Maria Mardones, recentemente falecido, interroga-se sobre como poderemos encarar os novos tempos, cientes de que nos afastamos da perspectiva histórica de cristandade, da concepção religiosa dominante e uniformizadora, da plenitude de meios de salvação e da contemplação externa, jurídica e institucional, da religião. De facto, assistimos ao decaimento do cristianismo de cristandade, a uma perda da evidência social da religião, ao aparecimento do integrismo, ao fim do monopólio religioso da instituição eclesial, à universalização e à descentralização do cristianismo (no inicio do século XX mais de 70% dos cristãos estavam no hemisfério norte, agora houve uma inversão e 70% estão a Sul), à emergência de novas formas de religiosidade e de buscas de espiritualidade, ao pluralismo religioso (“a globalização económica e cultural do nosso mundo proporcionou uma visão pluralista do fenómeno religioso”), ao surgimento de condições favoráveis ao diálogo inter-religioso, à renovação espiritual e à erosão da própria credibilidade do cristianismo europeu. Hoje, poderemos caminhar para um encontro inter-religioso, que poderá criar respeito e diálogo (“é de esperar que a globalização e a consciência de habitar um só mundo nos conduza a descobrir a pluralidade e riqueza da revelação divina”), avançar para uma reforma ou revolução espiritual ou ter um pluralismo religioso com uma maioria de formas experimentais e pouco sérias. Para J.M. Mardones é improvável que predomine um só dos cenários. É natural que haja uma mistura. E até poderá acontecer que estejamos a preparar um novo tempo axial, de mudanças profundas no sentido de uma maior maturidade humana…


TEMAS ACTUAIS, PISTAS MÚLTIPLAS – Sociologia, genética, neurobiologia, filosofia, teologia, psiquiatria, ciências da comunicação, história, ética e bioética são os vários saberes que povoam esta obra de referência. André Torres Queiruga fala do fim do Cristianismo pré-moderno e do diálogo Ciência / Fé, Teresa Martinho Toldy da Democracia e do Feminino na Igreja, Manuel Pinto dos meios de comunicação, José Maria Mardones refere o “Homo Cyberneticus”, João Maria André o Multiculturalismo e da mestiçagem, Juan Masiá Clavel o diálogo Ocidente / Oriente, da Bioética e do Diálogo inter-religioso, Joaquim Fernandes a “Biologia da crença”, Enrique Dussel a Fraternidade e a Solidariedade, Alexandre Castro Caldas o Cérebro e a Transcendência, Rui Coelho o Inconsciente, Adriano Moreira a Geo-estratégia, Fernando Regateiro os Genes, Frei Bento Domingues o tema da “moratória para as Missões” e Johann Baptist Metz o futuro do Cristianismo e o desafio do amor e da compaixão num mundo globalizado. Para Juan Martín Velasco, razão e mística completam-se: “Não é verdade que a mística feche os olhos da mente do crente. Supera, sem negá-la na sua própria ordem, uma determinada forma de conhecimento, abrindo ao mesmo tempo à razão humana as possibilidades insuspeitadas do Infinito, do Mistério de Deus”. E como afirmou Habermas: “Uma fé cientificista numa ciência que um dia não só completasse mas substituísse a autocompreensão pessoal por uma descrição objectivante de si mesmo não seria ciência, mas má filosofia”. O testemunho e o balanço de Schillebeeckx que Anselmo Borges incluiu no livro é um texto fundamental, que levanta dificuldades e exigências, designadamente no tocante ao diálogo inter-religioso, que não pode ser visto de ânimo leve, porque não se faz de lugares comuns. “Em Jesus a plenitude divina habita na figura limitada e verdadeiramente humana de Jesus. Esta limitação enquanto homem deixa essencialmente aberta a possibilidade de que Deus se dê a conhecer também noutras religiões”. Lacordaire falava da “nossa presença a Deus e de nossa presença ao mundo” – “na convicção forte de que o Deus vivo é um Deus dos homens, um Deus humanissimus”. O que leva Schillebeeckx a confessar-se “um crente optimista”.
                                                             Guilherme d’Oliveira Martins
 

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