A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária” de Maria Antónia Oliveira (Dom Quixote, 2007) é um itinerário completo, criterioso e sistemático que nos dá o retrato de corpo inteiro de um poeta fundamental do século XX, que pôde transmitir-nos a sua visão da sociedade e do tempo em que viveu de um modo inconformista e iconoclasta, ligando humor e ironia, drama e tragédia. «Num prefácio à obra de Nicolau Tolentino escrito em 1969, onde fala afinal de si mesmo (no dizer da biógrafa), Alexandre O’Neill desdenha dos ingénuos para quem ‘há poetas perfeitamente integrados numa vida normal’.

A VIDA DOS LIVROS
De 3 a 9 de Dezembro de 2007



“Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária” de Maria Antónia Oliveira (Dom Quixote, 2007) é um itinerário completo, criterioso e sistemático que nos dá o retrato de corpo inteiro de um poeta fundamental do século XX, que pôde transmitir-nos a sua visão da sociedade e do tempo em que viveu de um modo inconformista e iconoclasta, ligando humor e ironia, drama e tragédia. «Num prefácio à obra de Nicolau Tolentino escrito em 1969, onde fala afinal de si mesmo (no dizer da biógrafa), Alexandre O’Neill desdenha dos ingénuos para quem ‘há poetas perfeitamente integrados numa vida normal’. E avisa, matreiro: “Ou não são poetas ou integraram-se na vida normal para, distraidamente, o observarem a si”». Ele, porém, nunca se deixou integrar ou normalizar, seguindo a ideia de que não poderia levar-se muito a sério.




Foto de meados dos anos 50 provavelmente na praia do Baleal (Noémia Delgado).


A POESIA É A VIDA – Inclassificável, O’Neill iniciou-se nas águas surrealistas, e durante a vida foi utilizando as palavras e as ideias como instrumentos subtis, mas implacáveis, num permanente jogo em que a realidade surge vista sob o prisma do absurdo, que revela, em toda a sua crueza, o ridículo e o dramático. “A poesia é a vida? Pois claro! / Conforme a vida que se tem o verso vem / – e se a vida é vidinha, já não há poesia / que resista. O mais é literatura, / libertinura, pegas no paleio; / o mais é isto: o tolo dum poeta / a beber, dia a dia, a bica preta, / convencido de si, do seu recheio… / A poesia é a vida? Pois claro! / Embora custe caro, muito caro, / e a morte se meta de permeio”. Poesia e dia a dia, eis o que ele sempre cultivou, e Lisboa com os lisboetas encontram-se a cada passo, como se quisesse reinventar Tolentino, Cesário e Gomes Leal juntos e ao mesmo tempo. Poeta satírico? Muitos pretenderam colar-lhe esse rótulo. Mas O’Neill era avesso a essas classificações e embirrava com esta em particular, que considerava incorrecta: “É evidente que a poesia que faço tem uma certa ironia, mas daí até ser considerada satírica…! Uma coisa pode ser brincada e nada ter a ver com a sátira. Até porque então o sujeito dessa sátira seria eu próprio, o que do ponto de vista das definições tradicionais do género não pode acontecer. O poeta satírico coloca-se sempre fora do objecto da sua sátira” – afirmou em entrevista de 1983. De facto, encontramos na sua obra uma atitude singular, onde a sátira, a ironia e o puro jogo de ideias e palavras se encontra em exercícios de inteligência e sentimento. Como disse de si mesmo em “O’Neill (Alexandre), moreno português, / cabelo asa de corvo…”: sofria de ternura (“Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se / do que neste soneto sobre si disse”).
LISBOA ÀS MOSCAS –  O poeta era, no entanto, alguém que se preocupava especialmente com o bom uso da língua e com o rigor das palavras. Se dúvidas houvesse, temos, além dos seus escritos, desde as traduções aos textos publicitários (sem cuidar, claro está, da poesia) o testemunho do amigo muito próximo, Ruben A., a quem reviu intensamente “A Torre da Barbela”, obra maior do seu autor, que está directamente associada a O’Neill, de quem Ruben disse ser “um dos pioneiros do conhecimento correcto do incorrecto da língua e um dos três maiores poetas portugueses ainda vivos (falava em 1975). Acato as sugestões. ‘A Torre da Barbela’ na sua primeira versão tinha 600 páginas, ficou aparada a cerca de 300”. Contudo, Alexandre O’Neill fazia questão de não se levar a sério (como o seu amigo António Alçada Baptista gosta de salientar). Leia-se, aliás, “Caixadòclos” e veja-se o testemunho vivo disso mesmo, no momento em que o poeta começava a ser reconhecido: “- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / – Que és o esticalarica que se vê. / – Público em geral, acaso o meu nome… / Vai mas é vender banha da cobra! / – Lisboa, meu berço, tu me conheces… / – Este é um dos que fala sozinho na rua… / – Campdòrique, então, não dizes nada? / – Ai tão silvatávares que ele vem hoje! / Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / – É o do terceiro, nunca tem dinheiro… / – Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você… / – Dos dois ou três nomes que o surrrealismo… / – Ah, agora sim, fazem-me justiça! / Olha o caixadòclos todo satisfeito / a ler as notícias”. Aqui temos a ilustração irónica, de uma imaginação delirante, que nos dá a originalíssima ligação entre o culto da língua e a linguagem quotidiana. “Lisboa às moscas, Veneza aos gatos…”, longe de qualquer facilidade no funambulismo das palavras, o que O’Neill pretende sempre é fazer desse jogo um motivo de gozo, mas também de reflexão existencial e até metafísica. Daí as dificuldades que a leitura da sua poesia coloca, uma vez que há sempre uma sombra projectada no tapete que temos de desvendar com cuidado.
MEU REMORSO… – Maria Antónia de Oliveira elaborou um plano de escrita que nos permite seguir literariamente os passos de Alexandre O’Neill, mas, mais do que isso, possibilita-nos tomar contacto com os meios em que o poeta se moveu. Nesta “biografia literária” estamos perante “o escritor e o seu mundo” e podemos, por isso, acompanhar uma certa vida literária lisboeta, que irá ter uma influência decisiva no tempo seguinte até aos dias de hoje. O leitor conta, por isso, com a escrita e com a obra multifacetada do biografado e com uma conjunto muito vasto de depoimentos pessoais que garantem uma compreensão de quem foi Alexandre O’Neill, da sua vida e obra, com base em factos e em interpretações fundamentais, desde os tempos do “Xana” até à presença dos “fantasmas”, passando pelo “surrealismo, doença infantil do Neo-realismo”, “o modo funcionário de viver” ou “a saca do O’Neill”. Há uma caminhada que acompanhamos, pontuada por uma reflexão permanente e por um rigor literário que surpreende quem confunde o facto de o poeta não se levar muito a sério com uma ideia de ligeireza poética, que nunca existiu em Alexandre O’Neill. Aliás, não há amadorismo neste escritor que a maior parte das vezes precisou dos textos para sobreviver. Lugares e pessoas são descritos por Maria Antónia Oliveira, como se fossem cenários e personagens de ficção, mas depressa percebemos que a vida é sempre mais rica e inesperada do que a ficção. E a que assistimos? Às vicissitudes do Grupo Surrealista de Lisboa, ao encontro e ao desencontro com Mário Cesariny, ao papel de António Pedro, à fotografia mítica de 1948 no Jardim da Parada (em que Alexandre se faz retratar com um osso a fazer de mão), à demarcação de 1951, quando O’Neill se aproxima do Neo-realismo (“através de pequenos mitos, um a um desfeitos, deu-se a necessária ilusão”), tudo permite ver uma personalidade complexa e inquieta cheia de talento. E esse talento permite-lhe interrogar-se sobre Portugal, em termos inteiramente novos, assumindo subjectiva e existencialmente o drama de um país fechado e em diminutivo. O poema citadíssimo pode sempre ser lido de novas maneiras, e facilmente percebemos que a nossa própria relação com a terra as gentes que está em causa. “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, meu remorso de todos nós”. O poema tornou-se emblemático, representando uma visão muito portuguesa, entre a exigência crítica e um afecto muito especial.
PORTUGAL – E Fernando Assis Pacheco conseguiu de O’Neill, em 1982, uma confissão espantosa: “Sem pieguice, digo-lhe que sempre ‘sofri’ Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre”. Declaração contraditória e paradoxal. Alexandre O’Neill com a esperança íntima de pôr a pátria nos eixos…
                                                     Guilherme d’Oliveira Martins

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