A Vida dos Livros

Um livro por Semana

Quando Lisboa acaba de ser palco do Conselho Europeu informal em que foi aprovado o novo “Tratado reformador” da União é justo recordar uma obra emblemática de Francisco Lucas Pires, “O Que é a Europa” (Difusão Cultural, 4ª edição, 1994), que deve hoje ser relida com atenção. No prefácio, Eduardo Lourenço considera, aliás, estarmos diante de “uma síntese feliz e acessível da problemática histórica, cultural e ideológica ligada à Europa”. Para o autor, era tempo de “entre os adamastores passados e os obstáculos à proa” seguir uma via de “eurorealismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”.

UM LIVRO POR SEMANA
De 22 a 28 de Outubro de 2007.



Quando Lisboa acaba de ser palco do Conselho Europeu informal em que foi aprovado o novo “Tratado reformador” da União é justo recordar uma obra emblemática de Francisco Lucas Pires, “O Que é a Europa” (Difusão Cultural, 4ª edição, 1994), que deve hoje ser relida com atenção. No prefácio, Eduardo Lourenço considera, aliás, estarmos diante de “uma síntese feliz e acessível da problemática histórica, cultural e ideológica ligada à Europa”. Para o autor, era tempo de “entre os adamastores passados e os obstáculos à proa” seguir uma via de “eurorealismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”. No entanto, Lucas Pires alertava, em nome da prudência, do equilíbrio e da legitimidade entre Estados, povos, instituições e cidadãos, para a necessidade de não ignorar o “peso das Nações”, para evitar abrir brechas de “desenraizamento, insolidariedade e conflito”. Daí propor “o caminho pelo meio”, que é o mais longo, mas também o mais fértil… No fundo, sem uma sábia ligação entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos, arriscamo-nos a criar uma realidade efémera, artificial e reversível sem ligação efectiva ao mundo da vida. Perante o percurso feito por F.Lucas Pires e o que reflectiu e escreveu não é difícil de dizer que hoje estaria satisfeito com os resultados alcançados em Lisboa, com o desbloquear de impasses e com o lançamento das bases de uma reforma das instituições europeias. No entanto, esta só será positiva se se traduzir em maior agilidade das instituições europeias, em maior protagonismo da União na cena internacional e em maior equilíbrio entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos. As normas supranacionais não valem só por si, mas constituem a base indispensável para um melhor funcionamento das instituições da democracia supranacional. E só uma forte vontade comum ajudará a ultrapassarmos o profundo mal-estar hoje sentido, de modo a superar o fosso entre as instituições europeias e as pessoas. E se bem virmos as coisas, a necessidade de um novo tratado decorre de não podermos continuar a manter uma estrutura construída para seis membros, ineficaz para vinte e sete Estados, do mesmo modo, que a defesa dos valores e interesses comuns não pode ficar à mercê de lógicas burocráticas ou dos egoísmos nacionais. E premonitoriamente o autor alertava-nos: “na passagem do milénio, alguns julgam ver mesmo a promessa de um novo século europeu, embora tal passagem seja crítica e os pessimistas não excluam uma nova noite do continente. Seja como for, a Europa ocupa de novo o centro e a vanguarda da história, desta vez, porém, com mais espírito de competição do que de domínio – no hemisfério norte – e de mais solidariedade do que tutória – no hemisfério sul”. O tempo veio a confirmar as dúvidas e as perplexidades, bem como os desafios e as esperanças. Assim, o que se exige é o assumir europeu de uma função medianeira, em lugar da tentação de fixar um fim da aventura, “que sempre foi no essencial a da própria liberdade e permanente reinvenção da história”. Continente de contrastes unido pelo conteúdo, acessível, recortado, temperado, em que a variedade é a regra, “a Europa não é uma Babel nem uma terra de ninguém”. Terra de conflitos e de contradições, de competição e de combate, alberga uma constante procura de equilíbrio e síntese através de várias influências, etapas e pólos. “É o dualismo entre fé e lei que, desde o início, torna possível o crescimento da liberdade e das liberdades – porventura o maior anelo e factor de dinamismo da história europeia no seu conjunto. Braudel considera mesmo que ‘liberdade’ – não apenas a individual mas também a das cidades, dos grupos e das nações – é mesmo a palavra-chave dessa história”. Assim, é possível ler “uma história através de várias histórias”. E é apaixonante seguir o percurso de Lucas Pires desde as raízes greco-romanas, das invasões bárbaras e da conversão cristã da Europa, para chegar à “coroação poética” da “Divina Comédia” e a uma “cultura comum europeia”, segundo a expressão feliz e correcta de T.S. Eliot, continuando na crise da República Cristã e na Europa dos tempos modernos – desde o Portugal da partida ao Portugal do Infante D. Pedro. “A Europa da cristandade termina por um processo de disjunções sucessivas e uma final autodestruição profunda no tempo do conflito das suas degenerescências e contradições”. E, seguindo Paul Valéry, é fundamental reter a emergência de uma grande síntese na identidade originária da Europa enquanto “legado greco-romano mais cristianismo”. A história moderna abre, no entanto, campo às diferenças e a uma conflitualidade decorrente da competição gerada no Renascimento e continuada no iluminismo, no liberalismo, na revolução social do industrialismo e na mundialização. Às condições para a emancipação nacional com equilíbrio e tolerância entre os Estados sucede a autarcia e o fechamento. E em 1914, depois da “Primavera dos Povos” ter-se inclinado para os nacionalismos proteccionistas, “a Europa como conceito e possibilidade de acção em comum” deixou de existir “por falta de solução para as suas contradições nacionais”. E foi a devastação da guerra e a necessidade de reconstrução que fez regressar à ordem dia um programa europeu, no contexto de uma “paz ameaçada e provisória” e segundo um modelo de “integração funcional”. Tratava-se de transformar as energias de guerra em energias de paz, exigindo a partilha de soberanias e a salvaguarda de um projecto assente nos “valores comuns da liberdade” (cidadania europeia), na “democracia” (co-decisão e esboço de democracia parlamentar nas relações entre a Comissão e o Parlamento), no “desenvolvimento” (moeda única e coesão), e na “segurança” (política externa e de segurança comum e cooperação policial e judicial), “factores de uma maior comunhão identitária”. Eis a base do método comunitário e da subsidiariedade…


NOTA – Ao fim de dois anos, chega ao fim esta secção, que cederá lugar na próxima semana a uma outra designada “A Vida dos Livros”, na qual continuaremos a falar de Livros, mas na perspectiva do seu diálogo com o mundo da vida. Todas as semanas falaremos de um livro, mas daremos outras indicações de leitura, podendo haver comentários do público…
                                                     Guilherme d’Oliveira Martins

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