A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“Portugal” (1ª edição, 1950) era para Miguel Torga um totem, uma referência altiva e permanente. De norte para sul, começa por se fixar no Reino Maravilhoso – «do meu Marão nativo abrange-se Portugal; e de Portugal abrange-se o mundo». E sentimos que sempre houve e haverá reinos maravilhosos e sofremos o calafrio do assombro. «Para cá do Marão…». Foi daqui que partiu o escritor para ver o mundo – «Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas».

UM LIVRO POR SEMANA
De 30 de Julho a 5 de Agosto de 2007



“Portugal” (1ª edição, 1950) era para Miguel Torga um totem, uma referência altiva e permanente. De norte para sul, começa por se fixar no Reino Maravilhoso – «do meu Marão nativo abrange-se Portugal; e de Portugal abrange-se o mundo». E sentimos que sempre houve e haverá reinos maravilhosos e sofremos o calafrio do assombro. «Para cá do Marão…». Foi daqui que partiu o escritor para ver o mundo – «Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas». Assim se entende o homem de extremos que Torga foi, doce e implacável. E assim se entende que o verde acolhedor do Minho o não satisfaça, apesar da alegria e da lhaneza. «Em Portugal, há duas coisas grandes, pela força e pelo tamanho: Trás-os-Montes e o Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, a convulsão; o Alentejo, o fôlego, a extensão do alento». São, no fundo, províncias irmãs que tocam profundamente o coração do escritor. Depois vem o Doiro, «rio e região», certamente «a realidade mais séria que temos» – e «é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo». E o Porto de que Torga gostava? «A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima abaixo…». A mesma cidade cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias… «Ah! Eu gosto do Porto!» – a primeira cidade do Portugal peninsular. E a Beira? “Como aquelas divindades ciosas, que não consentem adoração a mais nenhum poder, só fascinado por ela o peregrino é capaz de caminhar e perceber. Beira quer já de si dizer beira da serra. (…) Alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão». E a verdade é que a serra da Estrela não separa, une e concentra. E andando se chega a Coimbra. «Tanto o sol como a lua se esforçam por mantê-la numa irrealidade poética, feita do alvoroço das sementeiras e da melancolia das desfolhadas», mas Torga é o primeiro a pôr-nos de sobreaviso contra a irrealidade e a ilusão, que leva à confusão entre «um pedaço da natureza e da pátria com uma oleogravura de bordel». Linda cidade, é certo, mas há que ter consciência de “uma modesta mediania risonha». O Litoral é a pátria ribeirinha, a Estremadura, coutada do nosso lirismo, as fantasmagóricas Berlengas, o Ribatejo da transição e da festa brava («a vida é um desempate permanente, e o que é preciso é jogar com limpeza e formosura em cada número da caprichosa roleta»). E temos Lisboa, bonita, capital política, cosmopolita, provinciana e acomodada, simbolizada pelo «Velho do Restelo da epopeia, o melhor símbolo até hoje concebido do Portugal de courelas e ovelhas», que vive ainda «na pele do homem que nos nossos dias desce da Estrela, do Marão e da Peneda, pernoita na Mouraria, e amanhece com um travo a carne cosmopolita e venal, a fado, a volúpia de maresia de Oriente». Mas a nação não morre de amores pela capital, e esta paga-lhe na mesma moeda… Afinal, «o país não é o Terreiro do Paço!» E este é o dito simétrico do outro que usam as gentes do Marão. Para Torga, na senda de Herculano, Portugal não nasceu feito, faz parte das nações que se fizeram, «contra todos e contra tudo, e nunca teve sossego nas fronteiras». Um dia, conta-nos no «Diário», em viagem na linha no norte, ao ver «a paisagem a fugir dos olhos a cem à hora, o prato a dançar sobre a mesa e o caldo a saber a bedum», perguntava: «quem é que se identifica com a courela inamovível onde nasceu». E a resposta tem a ver com a aversão a um qualquer movimento descontrolado: «As pátrias não se mexem do sítio, nem consentem que a gente mexa também». Esta foi sempre a atitude de Torga para com Portugal, encarado como lugar referencial, como realidade multifacetada, cadinho de mil perspectivas e atitudes. Longe das abstracções, Portugal é uma composição de elementos diferentes e contraditórios, que se projecta na impossibilidade de simplificar para entender a terra e as gentes, num esforço necessário para procurar linhas de força e de fraqueza. «Microcosmo variegado, ora montanhoso, ora ondulado e plano, de cada miradouro é inédito e diverso. Árido aqui, verdejante ali, terroso acolá, passeá-lo é conhecer em miniatura as feições aráveis da Terra. Sulcado por rios líricos ou dramáticos, consoante o leito, espelha-se neles ao natural o perfil da paisagem» (Diário XV). Terra de extremos e de meias tintas, permite entender bem que «a ideia de nação, embora historicamente se justifique, pelo menos cá neste Ocidente, não é de certeza a última palavra em matéria de arrumação do mundo» (Diário VII), certo é que «no decorrer dos séculos, este povo pacífico, que sempre se soube defender e nunca soube agredir, aparentemente parado no tempo, foi a própria encarnação do espírito renovador, na tolerância, na curiosidade, na inventiva». Se há deslumbramentos, no amor da terra mítica, não são de esquecer as acusações sem piedade. «Fundadora de novas pátrias, esta pequena pátria» tem uma «inquietação dispersiva que faz o português um peregrino das sete partidas, um cidadão do mundo». Mas os contrastes são evidentes – de um lado, «o Portugal telúrico e arcaico, ainda não desfigurado na alma»; de outro, o país «contemporâneo do presente, cosmopolita e cultivado, que tem pergaminhos nas artes, nas letras, na política e na religião». Porém, o Portugal eterno é «o do arado e do remo», país «anónimo e humilde» (Diário XV). Como costumava dizer, «cada qual procura-se onde se sente perdido. Eu perdi-me em Portugal e procuro-me nele».
                                                        Guilherme d’Oliveira Martins

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