A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

Cornelius Castoriadis (1922-1997) é um dos autores europeus mais interessantes e estimulantes da segunda metade do século XX. Dele acaba de ser publicado entre nós o livro “Uma Sociedade à Deriva – Entrevistas e Debates, 1974-1997” (tradução de Miguel Serras Pereira, edições 90 graus, 2007) que merece leitura atenta. Os textos inseridos nesta obra, que envolve, na prática, uma espécie de balanço do autor, permitem encontrar pistas para uma melhor compreensão dos grandes desafios da sociedade democrática contemporânea. Antes de mais, deparamos com a demarcação relativamente à ideia de “utopia”.

UM LIVRO POR SEMANA
De 16 a 22 de Julho de 2007



Cornelius Castoriadis (1922-1997) é um dos autores europeus mais interessantes e estimulantes da segunda metade do século XX. Dele acaba de ser publicado entre nós o livro “Uma Sociedade à Deriva – Entrevistas e Debates, 1974-1997” (tradução de Miguel Serras Pereira, edições 90 graus, 2007) que merece leitura atenta. Os textos inseridos nesta obra, que envolve, na prática, uma espécie de balanço do autor, permitem encontrar pistas para uma melhor compreensão dos grandes desafios da sociedade democrática contemporânea. Antes de mais, deparamos com a demarcação relativamente à ideia de “utopia”. Castoriadis diz-nos que o “projecto de autonomia não é uma utopia”: «A utopia é qualquer coisa que não tem nem pode ter lugar. Aquilo a que eu chamo o projecto revolucionário, o projecto da autonomia individual e colectiva (sendo as duas indissociáveis) não é uma utopia, mas um projecto social-histórico que pode ser realizado, do qual nada há que indique a impossibilidade. A sua realização depende apenas da actividade lúcida dos indivíduos e dos povos, da sua compreensão, da sua vontade e da sua imaginação». A cidadania deve, assim, construir-se não por referência a um modelo que não pode existir, mas segundo uma vontade não conformista que leve as pessoas a participar na legislação, no governo, na jurisdição e na instituição da sociedade. Daí não bastar partir da distinção entre Estado e sociedade civil. Deveremos, sim, considerar, distinguir e articular três esferas: o oikos (casa e esfera privada), a ekklésia (a assembleia do povo, a esfera pública) e a ágora (o “mercado” e lugar de encontro, a esfera pública-privada). Enquanto no totalitarismo há uma propositada confusão de esferas, no liberalismo há um predomínio do “mercado” no campo público-privado. Já a democracia, na acepção do autor, “é a articulação correcta das três esferas e a transformação em verdadeiramente pública da esfera pública”. Como fazê-lo na prática? Não há receitas e não podemos esquecer que vivemos um período de “conformismo generalizado”. Daí ser indispensável proceder a uma análise cuidadosa da evolução da sociedade e das suas condições concretas, o que levou Castoriadis a afastar-se do marxismo pela assunção de uma posição crítica complexa, fundamentada, de modo inconformista. E, perante Richard Rorty, recentemente falecido, nega, com muita clareza, uma visão da história da humanidade como caminho para a salvação, bem como a tentativa de reduzir a história da humanidade à narrativa da história da filosofia e dos seus erros. Afinal, o “objecto da política não é a felicidade, o objecto da política é a liberdade”. Deste modo, a opção que Rorty estabelece – “criar uma sociedade sem miséria ou criar uma sociedade boa para a existência de Sócrates, ou dos Sócrates modernos que seríamos nós” – é um falso dilema. Perante o desafio da liberdade, a função do intelectual não é, deste modo, estar na vanguarda da sociedade, mas pôr em questão o instituído, interrogar e criticar. Sem a distanciação do instituído, de facto, não há criatividade nem pensamento. Não disse a tragédia grega ao “demos” ateniense: «sois mortais, e correis o risco de cair na “hubris”, que trará a vossa ruína»? Por isso, Castoriadis afirma que se lhe dessem uma tribuna, proporia ao povo que instaurasse um outro tipo de democracia, baseada em cerca de quinze artigos constitucionais – «sem esquecer que uma Constituição nada é sem a adesão activa dos cidadãos». Mais do que uma determinada visão das Ideias, trata-se de agir como cidadãos, atentos aos acontecimentos, disponíveis para exercer sempre o sentido crítico, como fizeram Sócrates no processo dos Arginusos e Zola no caso Dreyfus. E hoje isso mesmo é cada vez mais actual, uma vez que a sociedade global baseada na informação instantânea favorece a harmonização e o conformismo. A institucionalização da liberdade torna-se a grande prioridade das sociedades humanas. “A verdadeira protecção das minorias na sociedade contemporânea (…) não reside tanto nem simplesmente nas regras escritas da Constituição como na construção de um tipo de indivíduo democrático, que incorporou em si próprio as componentes democráticas das instituições”. Respeitar a lei comum, não significa sacralizar a autoridade, e os cidadãos tornam-se assim os garantes da própria liberdade. Os Estados instituídos não são omnipotentes, o seu poder decorre, afinal, da crença das pessoas no seu poder. Tudo depende, por isso, do desejo e da capacidade dos homens e das mulheres de mudarem a sua existência social. É uma questão de responsabilidade pelo próprio destino. E Castoriadis lembra que, no fundo, “nem a expansão da economia capitalista, nem o governo, nem as leis da História, nem o Partido trabalham, alguma vez, para eles. O seu destino será aquilo que eles próprios quiserem e forem capazes de fazer”. Mais do que o termo ambíguo de “experimentação social”, o que está em causa é a própria “criação”. Esse esforço criador, na tradição das cidades democráticas gregas e da Europa ocidental, nem é mera necessidade histórica, nem é simples exigência “moral” – é uma exigência política e humana. O que está em causa é, mais do que um programa, uma hierarquia de valores, e uma participação activa não só na sua realização, mas também na sua extensão e no seu desenvolvimento e, sendo caso disso, na sua alteração. E “a tarefa de um homem livre é saber-se mortal e manter-se de pé à beira do abismo, neste caos desprovido de sentido e no qual nós fazemos emergir a significação”… No fundo, a democracia moderna tem de compreender a importância da auto-instituição da sociedade e do seu imaginário, para que a componente criadora seja reforçada e para que funcione o desejo e a capacidade dos homens e das mulheres de mudarem a sua existência social.
                                                                         Guilherme d’Oliveira Martins

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