A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

Hoje referimo-nos a Jan Patocka (1907-1977), um dos grandes filósofos checos do século XX, cujo centenário ocorre dentro de dias, a propósito de um conjunto de doze ensaios publicados sob o título «L’Écrivain, son ‘objet’» (Presses Pocket, 1992). Nascido em Turnov, viveu a maior parte da sua vida de estudioso, como um dos mais fecundos seguidores da escola fenomenologista, na cidade de Praga, com excepção de curtos períodos em Paris, no final dos anos vinte, e em Berlim e Friburgo no início da década de trinta.

UM LIVRO POR SEMANA
De 21 a 27 de Maio de 2007



Hoje referimo-nos a Jan Patocka (1907-1977), um dos grandes filósofos checos do século XX, cujo centenário ocorre dentro de dias, a propósito de um conjunto de doze ensaios publicados sob o título «L’Écrivain, son ‘objet’» (Presses Pocket, 1992). Nascido em Turnov, viveu a maior parte da sua vida de estudioso, como um dos mais fecundos seguidores da escola fenomenologista, na cidade de Praga, com excepção de curtos períodos em Paris, no final dos anos vinte, e em Berlim e Friburgo no início da década de trinta. O seu falecimento foi rodeado de mistério e de escândalo, uma vez que ocorreu na sequência dos interrogatórios policiais de que foi alvo, por ser porta-voz da Carta de 77, documento e movimento que reivindicavam a liberdade política e de pensamento, e que teve grande repercussão na Europa e no mundo. Em virtude desse corajoso acto de cidadania, o filósofo foi alvo de uma feroz perseguição da polícia política checa, que conduziu à sua morte, em Março de 1977. Os ensaios, muito estimulantes, a que nos referimos abordam temas tão diferentes como a linguagem, os mitos ou as formas do discurso literário, desde a tragédia e a epopeia antigas até ao teatro de Tchekov. Não se trata, porém, de uma reflexão abstracta e teórica, mas de textos (feitos desde os anos quarenta aos setenta do século XX) marcados pelo compromisso pessoal e cívico do autor, contra os regimes totalitários, contra os prisioneiros de consciência e as diversas formas de privação da liberdade – em nome da dignidade da pessoa humana, referencial maior da obra do filósofo e do pensador. Jan Patocka teve, por isso, sempre bem presente (e destacou-o a cada passo) que a liberdade só faz sentido quando ligada à autonomia e à dignidade. Deste modo, ao interrogar-se sobre o pensamento do pensador checo setecentista Coménio disse: “a dominação do mundo pelo conhecimento não é forçosamente fundada num projecto subjectivista sobre o ser que realiza a alma fechada (tradicionalmente identificada com o absoluto). Pode também significar uma participação na ambivalência dos princípios da mundanidade como um todo. E entendemos aqui a ambivalência no sentido do paradoxo de Pascal: a miséria e a grandeza em simultâneo, a compreensibilidade e o mistério, o abaixamento e a elevação do homem e das coisas”. Deste modo revelar-se-ia a pascaliana “desproporção do homem”, perfeitamente compatível com a ideia da dominação do mundo pelo conhecimento obtido não a partir da ideia de “alma fechada” mas da ideia de “alma aberta”, centrada na revelação do nada e no mito da errância e do regresso do peregrino, que Coménio trata em “O Labirinto do mundo e o Paraíso do coração” (1623), e que Patocka analisa cuidadosamente. Aí a peregrinação do mundo, o exame dos negócios humanos e a análise do que é fútil e vão permitem, com base teológica e sob a invocação de Cristo, o regresso a nós mesmos. E é no coração de cada qual que chega a verdadeira felicidade. Assim, a imperfeição da “alma aberta” pode conduzir também ao domínio do mundo. A consciência dos limites torna-se o ponto de partida para a “emmendatio rerum humanarum”, que visa a reforma das relações humanas, a partir da educação (Didáctica Magna). E educar significa reformar e humanizar – em vez de dominar pela força, pelo poder e pela violência. Patocka, com base no pensamento de Coménio, afirma, nesta ordem de ideias, que a Europa dos dias de hoje precisa de uma conversão espiritual, já que a concepção da alma fechada se confronta com a ocorrência de conflitos fatais e com o progresso de uma técnica de destruição. Só a espiritualidade poderá, assim, mais do que a técnica, conduzir-nos a soluções positivas e ao respeito da humanidade… A pedagogia não se limitará, assim, a inocular um saber e um poder, trabalhará pacientemente a fazer compreender que a alma humana está centrada fora do mundo das coisas e que a sua tarefa consiste em se superar e em se dar. Não podemos, pois, deixar de ouvir o que nos ensinam a tragédia grega e a filosofia que ela reclama: «A Antígona de Sófocles representa (…) uma invocação sem força, a invocação de uma esperança ínfima, apesar da grandeza da consumação poética – invocação do que o pensamento de Creonte ocultou completamente em nós: o facto de o homem não se pertencer, de o seu sentido não ser o Sentido, de o sentido humano acabar quando se aborda a margem da Noite (o que Antígona assume), e de a Noite não ser o nada, mas pertencer ao que “é”, no sentido próprio do termo. Para o espírito grego, o preceito “conhece-te a ti mesmo” não significava outra coisa. Cada episódio, cada coro, cada verso, cada palavra de “Antígona” de Sófocles é uma expressão deste conhecimento de si». E Patocka põe o dedo na ferida fundamental do nosso tempo, a da pecha de Creonte, que é, por racionalismo, o pai do que poderíamos designar como irracionalismo. Aqui continua a centrar-se o grande paradoxo do tempo. Antígona afronta a contradição e denuncia-a, e a origem da tragédia aí está como sinal supremo da encruzilhada (ou da crise) humana e da exigência de partir dos gestos imperfeitos para o entendimento do ser… Naquele dia de 1977, quando Patocka morreu, foi a tragédia que se repetiu. Na prática matou-o o facto de combater, de denunciar, de ser coerente, de recusar a desordem estabelecida, mascarada de ordem. Também ele, como Antígona, ousou afrontar a racionalidade cega. E a consumação ocorreu, inexorável… 
                                                                  Guilherme d’Oliveira Martins 

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