A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

René Rémond (1918-2007), uma das grandes referências da historiografia francesa contemporânea, titular da cadeira número 1 da Academia Francesa, onde sucedeu a François Furet, deixou-nos. Hoje recordamo-lo através da leitura de “Introdução à História do Nosso Tempo” (3 volumes, Antigo Regime de Revolução, 1750- 1815; Século XIX, 1815-1914; Século XX, de 1914 até aos nossos dias, Seuil, 1974).

UM LIVRO POR SEMANA
De 16 a 22 de Abril de 2007.



René Rémond (1918-2007), uma das grandes referências da historiografia francesa contemporânea, titular da cadeira número 1 da Academia Francesa, onde sucedeu a François Furet, deixou-nos. Hoje recordamo-lo através da leitura de “Introdução à História do Nosso Tempo” (3 volumes, Antigo Regime de Revolução, 1750- 1815; Século XIX, 1815-1914; Século XX, de 1914 até aos nossos dias, Seuil, 1974). A obra constitui a análise serena e intensa de um percurso histórico em que o domínio europeu do mundo deu lugar à emergência de novos e complexos factores que levaram à mistura entre sinais de progresso e de retrocesso, de racionalidade e de irracionalidade, de memória e de amnésia… Muitas vezes os sinais positivos foram rapidamente destruídos, gerando a emergência do trágico e do desastre. Rémond fala, por isso, de factores de unidade e de princípios de divisão, ou seja, de forças centrípetas e centrífugas. Não diagnosticou ele na história da direita francesa três famílias muito diferentes: orleanista ou liberal, bourbónica ou conservadora e bonapartista ou autoritária, no seu rigor analítico? Na génese do mundo contemporâneo, os transportes e as comunicações, a difusão instantânea das informações, a propagação à superfície do globo de algumas grandes línguas universais (o inglês ou o árabe), a uniformização pelo progresso técnico (a industrialização e a urbanização), a homogeneização dos costumes, dos gostos, lazeres e divertimentos (a moda, o cinema, o desporto), o desenvolvimento de um fundo de ideias comuns, a emergência de ideologias universalistas têm correspondido, segundo o nosso autor, aos factores unificadores, que se acentuaram nos últimos anos. Mas, por outro lado, há ainda as barreiras culturais e civilizacionais, as fronteiras que criam separações radicais entre os membros de determinadas comunidades de hoje e o resto da humanidade (o que levou Huntington a falar do risco de “choque das civilizações”). E assim “os mesmos factores técnicos, económicos, linguísticos e ideológicos tanto podem concorrer para a aproximação das sociedade humanas quanto podem contribuir para o antagonismo dos conjuntos políticos”. E se René Rémond fala da divisão ideológica da guerra-fria (escrevia em 1974) aduz ainda a importância da divisão entre países desenvolvidos e os outros, em vias de desenvolvimento, uma parte contra três partes da humanidade. E o que “faz a gravidade da situação actual, a razão geradora de conflitos, é que os países subdesenvolvidos sabem que outros são desenvolvidos e que eles aspiram legitimamente a tornar-se desenvolvidos também”. Vivemos, assim, numa tensão inextricável entre a unificação gradual do mundo ou o nascimento de uma civilização comum, de um lado, e a exasperação dos conflitos, de outro – não tendo o historiador condições de dizer qual delas tem maiores possibilidades de realizar-se. E qual a tendência? A de um compromisso instável e sempre contestado entre as duas tendências contrariadas… Mas o que pensar enquanto europeus? Declínio, decadência, recuperação? As diversas ideias surgem a propósito da Europa. Ao longo da obra encontramos, a este propósito, a análise da emergência de ideias e momentos contraditórios difíceis de interpretar. Os conflitos sem solução levam à ideia de uma destruição quase suicida, mas depois renascem novos factores, mais ou menos lentos, que contrariam o fatalismo que parecia ser inevitável. O século XX anunciou-se como um século de progressos e de vitória da razão e da justiça e tornou-se exactamente o contrário, em cinquenta anos de loucura, em que a ilusão do domínio e da harmonização determinou a vitória momentânea dos totalitarismos avassaladores. E René Rémond analisa no último volume da obra, com minúcia, o século pequeno de que fala Hobsbawm, desde uma guerra ambígua para resolver problemas internos e externos dos grandes Estados, que originou desregulação económica, política e social, à crise das democracias liberais, à afirmação do comunismo e dos fascismos e ao encadeamento das crises até à segunda guerra (que mais não foi do que a extensão da primeira não resolvida)… E depois abriu-se a caixa de Pandora da mundialização, com os despertares da Ásia e do mundo árabe e da descolonização. A Europa saiu exangue da guerra em 1945, os Estados Unidos chegaram à ribalta como nova potência de primeiro plano, mas o final do século XX trouxe o reerguer lento (mas incerto) da velha Europa. Rémond refere o facto com insistência: “o processo de unificação europeia é radicalmente novo na história da Europa. A ideia, por certo, é antiga e constitui um jogo para os historiadores do pensamento europeu evocar os projectos do Abade Saint-Pierre ou dos seus percursores. Mas esses projectos sempre permaneceram em estado de intuição, e os políticos nunca pensaram em dar-lhes consistência. As únicas realizações foram ditadas pela ambição nacional e pela vontade de hegemonias…” O desafio actual é para Rémond o de aproveitar as novas oportunidades para passarmos do estado de intuição para o mundo das realidades, seguindo uma ideia positiva de um projecto comum e de encontrarmos as raízes plurais e os procedimentos de uma civilização humana comum. E os avanços europeus (bem como a lição de um sentido trágico) podem forçar caminhos favoráveis com o pano de fundo, já referido, do compromisso instável e sempre contestado entre as duas tendências contrariadas do nascimento de uma civilização comum e da exasperação dos conflitos … Trata-se, no fundo, de caminhar do particular para o universal, e a União Europeia representa um exemplo precursor nessa tentativa, como René Remond disse várias vezes no seu magistério cívico. No entanto, importa compreender as circunstâncias concretas e os equilíbrios necessários – o que sempre esteve no horizonte reflexivo do historiador – para que a via do universal se não torne uma ilusão vã.
                                                                 Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter