A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA – de 19 a 25 de Janeiro

“O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente” de José Eduardo Franco (2 volumes, Gradiva, 2006) é uma obra de historiografia e antropologia religiosa que se destaca pela qualidade da investigação que contém e pela grande cópia de fontes que abarca. A partir de agora, quem quiser estudar a Companhia de Jesus terá de recorrer a este estudo, que apresenta não só uma sólida fundamentação nas fontes, mas também uma análise segura e séria da problemática em questão.

UM LIVRO POR SEMANA
De 19 a 25 de Fevereiro de 2007



“O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente” de José Eduardo Franco (2 volumes, Gradiva, 2006) é uma obra de historiografia e antropologia religiosa que se destaca pela qualidade da investigação que contém e pela grande cópia de fontes que abarca. A partir de agora, quem quiser estudar a Companhia de Jesus terá de recorrer a este estudo, que apresenta não só uma sólida fundamentação nas fontes, mas também uma análise segura e séria da problemática em questão. Não estamos perante uma história da Companhia, mas sim em face do estudo da “figuração mítica” de uma congregação religiosa que gerou a “construção de uma imagiologia de carácter ficcional”, que foi passando como “indubitavelmente verdadeira”. Foi um mito que se gerou desde as origens, através de uma trama, de início compreensível em virtude da novidade da congregação e do seu método, depois ainda entendível em face da atitude assumida no Brasil de confronto com os colonos e de defesa dos índios; mas, por fim, depois da governação pombalina (1750-1777), já claramente ligada a um processo ideológico com componentes diversificadas e nem sempre fáceis de entender. Este o tema da obra. E assim o jesuitismo tornou-se bode expiatório, com todas as características de “complot”, semelhante a outros de lembrança tristemente célebre quando não trágica – desde o judaísmo à franco-maçonaria, passando pelos templários. E o que é apaixonante na obra é o retrato do mito, a exterioridade dessa análise. Há uma teia que se tece à volta da ordem com o objectivo de a contrariar ou de reduzir o seu peso. O mito social vai crescendo e toma facetas alucinantes. Como diz J. Lacouture: “o jesuíta é menos julgado do que sentido ou ressentido”. E o certo é que o mito obriga permanentemente ao olhar em simultâneo para o alvo da flecha mortífera e para quem a constrói laboriosamente. Tudo começou com as desconfianças dos próprios meios religiosos relativamente aos métodos novos e à flexibilidade no recrutamento e na preparação dos membros da ordem. Franciscanos e dominicanos olhavam com sentido ferozmente crítico a matriz militarista da nova organização de Santo Inácio de Loyola, a começar no próprio nome – Companhia. O crescimento material e político da nova organização causou medos, murmurações e resistências. Mas em Portugal, D. João III viu com muito bons olhos a nova congregação e inseriu-a na estratégia da Índia. E com tanta determinação o fez, que o próprio S. Inácio considerou o rei português como pai, protector e fundador da nova ordem. A pouco e pouco, ao contrário do primeiro mito, os sacerdotes jesuítas ganham fama de bem preparados, mas não escapam à suspeita de mundanismo. O próprio Camões faz-se eco da crítica (“E vós outros que os nomes usurpais / De mandados de Deus, como S. Tomé, / Dizei: se sois mandados, como estais / Sem irdes a pregar a Santa Fé?”). S. Francisco Xavier assume, desde cedo, um papel extraordinário de apóstolo da Ásia, ainda hoje venerado como poucos; mas também Anchieta no Brasil abre caminho a uma acção extraordinária. E esse caminho culmina no exemplo do padre António Vieira, o mais célebre dos jesuítas do século XVII – pregador e diplomata, político e cultor maior da nossa língua. “Os jesuítas tinham uma organização muito mais desenvolvida e eficaz do que os religiosos que os tinham precedido” (Luiz Filipe Thomaz). Ricci na China e Nobili no Malabar, distinguindo evangelização e razões de Estado, conseguem resultados apreciáveis. Vieira confronta-se com o Santo Ofício, a propósito do melindroso tema dos cristãos novos. Mas a segunda metade do século XVIII vai defrontar-se com problemas diferentes. Pombal afirma-se. Regalismo ou predomínio do poder secular sobre o poder religioso; despotismo esclarecido; e desenvolvimento das polémicas pedagógicas anti-jesuíticas (envolvendo a Congregação de S. Filipe Neri, os oratorianos, e os estrangeirados, como Luís António Verney, António Ribeiro Sanches, a que os jesuítas procuraram dar resposta através de uma maior exigência científica). Mas foi a questão político-económica que constituiu o detonador da crise. No Brasil e na América latina, os jesuítas desenvolveram um poder apreciável, nas reduções missionárias, em xeque depois do Tratado de Madrid sobre os limites, de 1750, que Sebastião José não podia tolerar. A “Dedução Cronológica e Analítica” procurou justificar uma maquinação, da autoria dos jesuítas, contra a razão e o progresso. As reformas da Educação, da Economia, da Sociedade, do Estado tinham como pano de fundo o antijesuitísmo. A primeira expulsão dos jesuítas (1759) assentou na razão de Estado que levou, por pressão internacional, à extinção da Ordem pela Bula papal, “Dominus ac Redemptor”, de Clemente XIV (1773). No entanto, logo em 1814, a Companhia viria a ser restaurada por Pio VII, sem que tivesse chegado a haver uma supressão efectiva. Na história portuguesa haveria mais duas expulsões (1834 e 1910), e desenvolver-se-iam fortes movimentos de opinião anti-jesuíticos e filo-pombalinos. Leia-se “A Sobrinha do Marquês” de Garrett, “As Causas da Decadência” de Antero, a própria “História” de Pinheiro Chagas. Mas há ainda a resistência de Camilo às simplificações. José Eduardo Franco desconstrói o mito, revelando-o, interpretando-o, contra as generalizações. Mas os inacianos vêem-se confrontados historicamente com as responsabilidades de refazer o mundo. Mundo que tantas vezes os não quis entender…        
                                                           Guilherme d’Oliveira Martins  

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