A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

José Mattoso em “A Identidade Nacional” (Gradiva, 1998) traça de um modo claro e compreensivo um quadro conceptual que nos permite lidar com naturalidade e sem dramatismos com o tema complexo da identidade. Em lugar de uma visão centrada apenas no que distingue, esquecida da complexidade e do relacionamento com outras realidades e outras culturas, o historiador assume uma perspectiva aberta sobre a identidade, com os olhos na compreensão da diferença.

UM LIVRO POR SEMANA
Semana de 29 de Janeiro a 5 de Fevereiro


José Mattoso em “A Identidade Nacional” (Gradiva, 1998) traça de um modo claro e compreensivo um quadro conceptual que nos permite lidar com naturalidade e sem dramatismos com o tema complexo da identidade. Em lugar de uma visão centrada apenas no que distingue, esquecida da complexidade e do relacionamento com outras realidades e outras culturas, o historiador assume uma perspectiva aberta sobre a identidade, com os olhos na compreensão da diferença. E conta-nos que um dia o rei D. Luís perguntou do seu iate a uns pescadores, com quem se cruzou, se eram portugueses; e a resposta foi desconcertante e clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa do Varzim!” A resposta dá bem nota da complexidade do problema. O serem portugueses não lhes pôde ocorrer, quando a pertença à comunidade de origem estava mais presente. O sentimento de pertença afirma-se, de facto, em diversos níveis, pela interpretação dos elos culturais, antes até das considerações de fronteira ou de língua. Se seguirmos os acontecimentos históricos – Reconquista, D. Afonso Henriques, definição da fronteira, adopção da língua com D. Dinis, o Mestre de Aviz e a afirmação de uma causa de “portugueses”, o contacto com novas terras e novas gentes da Expansão portuguesa, a decadência, o sebastianismo, a dominação filipina, a Restauração e a guerra, o pombalismo, as invasões francesas, as guerras civis, os melhoramentos materiais, a decadência e a difusão do sentimento nacional a partir de 1890 – descobrimos que a formação da “nossa identidade” corresponde à constituição gradual de uma realidade complexa e não homogénea. Os nossos primeiros reis eram-no “dos portugueses”, mas D. Afonso II passou a referir-se a Portugal, como um organismo com a sua própria consistência, “definido por si mesmo e não apenas pela pessoa do rei a que estava sujeito”. E depois de 1383 e dos relatos de Fernão Lopes sabemos como essa tendência se acentuou, sem pôr em causa o protagonismo régio. “A atribuição de um valor à identidade nacional resulta (…) de um processo muito lento”. Só as “Décadas” de João de Barros consideraram pela primeira vez os portugueses como sujeitos dos relatos históricos das crónicas. Até aí tudo se centrava no protagonismo régio. Mas foi com “Os Lusíadas” que a gesta dos “portugueses” (povo que está “no extremo da Europa” e chega “aos confins do mundo”) se tornou foco de atenções e matéria de epopeia. Camões deu, assim, um forte impulso “ao processo de consciencialização da identidade nacional”. E o épico tornou-se um símbolo, designadamente no século XIX, no movimento que levou depois do Ultimato inglês a uma forte afirmação “patriótica” e “nacionalista”. Houve uma evolução longa que levou ao enraizamento do sentimento de pertença, mas que esta não pode confundir-se com o carácter “natural” ou “eterno” do fenómeno identitário. E não podemos esquecer as dualidades geográficas e espaciais (litoral, interior; Norte, Sul; capital, província) e a heterogeneidade na distribuição de poderes e recursos. Apesar das múltiplas tentativas para explicar a dualidade peninsular, a verdade é que apenas a concepção política, mais ou menos ligada à vontade realçada por Herculano, apresenta a consistência que permite incorporar um conjunto muito amplo de factores, que apenas se reúnem porque existe uma realidade política e uma organização administrativa comum. O fortalecimento da Monarquia e do Estado fez-se pela centralização do poder real, em tensão com o alto clero e alta nobreza, mas com o apoio dos concelhos e da maioria do clero e da nobreza, mercê da administração dos benefícios, privilégios e mercês. E até aos nossos dias essa evolução faz-se sentir, estando hoje confrontada com os desafios e as incertezas da abertura democrática e do projecto europeu… Em suma, “Portugal não teve origem (…) numa formação étnica, mas numa realidade político-administrativa. Dito por outras palavras, e em oposição a uma doutrina geralmente aceita durante o período nacionalista, Portugal começou por ser uma formação de tipo estatal; só muito lentamente acabou por se tornar uma Nação (…). O Estado português foi agregando a si uma série de áreas territoriais com poucos vínculos entre si, com acentuadas diferenças culturais e com condições de vida muito distintas. O que fez a sua unidade foi a continuidade de um poder político que dominou o conjunto de uma maneira firme e fortemente centralizada” (p. 67).
                                                                Guilherme d’Oliveira Martins    


 

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