A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“A Nuvem do Não-Saber” de um autor inglês anónimo do século XIV, publicada na colecção Teofanias, dirigida por José Tolentino de Mendonça (Assírio & Alvim), é uma obra surpreendente pela limpidez e clareza que conserva, quase sete séculos depois de ter sido escrita. José Mattoso, no magnífico prefácio que assina, recorda-nos, aliás, que estamos perante o que é classificado por historiadores da mística cristã como “um dos mais belos textos místicos de todos os tempos”.

UM LIVRO POR SEMANA
Semana de 8 a 14 de Janeiro de 2007


A Nuvem do Não-Saber” de um autor inglês anónimo do século XIV, publicada na colecção Teofanias, dirigida por José Tolentino de Mendonça (Assírio & Alvim), é uma obra surpreendente pela limpidez e clareza que conserva, quase sete séculos depois de ter sido escrita. José Mattoso, no magnífico prefácio que assina, recorda-nos, aliás, que estamos perante o que é classificado por historiadores da mística cristã como “um dos mais belos textos místicos de todos os tempos”. Com maior circunspecção, há pelo menos quem afirme que se trata de “um dos mais belos tratados espirituais de todo o século XIV”, na expressão de F. Vandenbrouke. De qualquer modo, José Mattoso diz que “tanto basta para suscitar a curiosidade dos leitores interessados nestas matérias, e que não se assustam por ter sido escrita há quase setecentos anos, por não se poder identificar o autor ou por apresentar o seu misterioso título A Nuvem do não-saber”. Vertido para português de um modo muito competente por Lino de Miranda Moreira, O.S.B., o livro torna-se um “vade mecum” precioso para os dias de hoje, na medida em que coloca à luz do dia os valores permanentes da espiritualidade e a tensão entre acção e contemplação, como acontece no capítulo XVIII, significativamente intitulado: “De como, ainda hoje, os activos se queixam dos contemplativos, da mesma forma que Marta se queixava de Maria. A causa de tais queixas é a ignorância”. E aqui as duas irmãs de Lázaro funcionam como as duas faces da vida, ambas igualmente necessárias. “A Nuvem do não-saber”, “Cloud of unknowing” é um pequeno tratado escrito à volta de 1380 no seio da chamada “escola inglesa”. Como no-lo diz ainda o prefaciador: “as suas palavras são simples e seguras. Dirige-se a nós como um mestre sereno e confiante, que se considera ainda a caminho, mas partilha já a tranquilidade que lhe dá posse do seu tesouro, transfigurado pela pacificação interior, certo de que muitos leitores querem também progredir no mesmo caminho e disposto a dar-lhes a mão para caminharem juntos. Escreve para eles, em termos claros, simples, directos, de uma calma intensidade”. Pouco importa saber a identidade verdadeira de quem escreveu, o certo é que a experiência que nos transmite é riquíssima, abrangendo a influência dos cenobitas do Egipto dos séculos IV a VII, a convergência do oriente e do ocidente e a vivência de uma intensa espiritualidade mística, que merece ser relembrada. E hoje, ao lermos “A Nuvem…”, deparamo-nos com uma contradição, se a obra se dirigiu aos que sinceramente queriam seguir a Cristo, e apenas a esses, ela é agora divulgada e constitui sucesso nos meios mais heterogéneos em grandes edições ou na Internet. E no entanto o autor afirma que a obra não deve cair nas mãos “dos tagarelas carnais, os bajuladores e os detractores de si mesmos ou dos outros, os mexeriqueiros, os linguareiros e os que espalham boatos e ainda toda a espécie de críticos…”. Percorrendo o pequeno tratado, sentimos uma lufada de ar fresco. Longe de uma visão doentia ou defensiva, há a leitura aberta e disponível, generosa e amorosa da vida – onde a pessoa humana no seu conjunto se exprime e manifesta: “a razão e a vontade chamam-se faculdades principais, porque a sua esfera é o puro espírito, sem nenhum contágio de materialidade. A imaginação e a sensibilidade chamam-se faculdades secundárias, porque actuam no corpo, com os cinco sentidos que ele tem. A memória considera-se uma faculdade principal, porque contém espiritualmente em si mesma não só as outras faculdades, mas também as realidades sobre as quais elas operam. Senão, reparas no que ensina a experiência”… Leitura, afinal, obrigatória!


Guilherme d’Oliveira Martins

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