A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“Um Outro Mar” de Cláudio Magris (Asa, 1993, trad. Simonetta Neto) é um pequeno livro onde se sente o ambiente de Trieste e da próxima Gorízia, esses lugares onde se cruzam as influências do Mediterrâneo e dos Habsburgos, da Itália, da Áustria e da península balcânica. Magris (1939), autor de “Danúbio”, história erudita de um rio, exemplo maior da literatura de viagens e de lugares, invoca em “Um Outro Mar” o mito mediterrânico do périplo e do regresso, fazendo reviver a saga de Ulisses a uma nova luz.

UM LIVRO POR SEMANA
De 18 a 24 de Dezembro de 2006


“Um Outro Mar” de Cláudio Magris (Asa, 1993, trad. Simonetta Neto) é um pequeno livro onde se sente o ambiente de Trieste e da próxima Gorízia, esses lugares onde se cruzam as influências do Mediterrâneo e dos Habsburgos, da Itália, da Áustria e da península balcânica. Magris (1939), autor de “Danúbio”, história erudita de um rio, exemplo maior da literatura de viagens e de lugares, invoca em “Um Outro Mar” o mito mediterrânico do périplo e do regresso, fazendo reviver a saga de Ulisses a uma nova luz. E neste caso tudo se passa como se o herói de Ítaca apenas tivesse ficado em Tróia vivendo uma não-vida na sua viagem e no regresso para junto de Penépole. “A virtude traz a honra” – assim começa tudo. E nota-se, ao longo da obra, uma tensão constante entre a procura da coerência, da virtude e da dignidade e o aparente sem sentido do que vai ocorrendo na linha do horizonte. É o século XX que decorre, incoerente e absurdo. Trieste testemunha o fim do império, o “apocalipse alegre”, a influência italiana, a emergência da barbárie nazi, a vitória do exército vermelho, a divisão da Europa, o poder do Marechal Tito, a guerra-fria. O helenista e filósofo Enrico Mreule parte em 1909 para a Argentina, antes da primeira guerra, fazendo-se gaúcho anónimo nas pampas da Patagónia. Para trás fica a Gorízia, ainda no Império Austro-húngaro, e o seu amigo Carlo Michelstaedter. Fica a lembrança das leituras, com Carlo e Nino, numas águas-furtadas de Gorízia, nas línguas originais de Homero, dos trágicos, dos pré-socráticos, de Platão, do Evangelho, de Schopenhauer, mas também dos Vedas, dos Upanixades, do sermão de Benares, dos discursos de Buda, de Ibsen, Leopardi e Tolstoi… Mas, mais do que a lembrança, sente-se a influência e a lição de Carlo: em nome da sabedoria, Enrico havia de pertencer, com a sua liberdade, ao círculo luminoso da felicidade e do ser, tornando-se guia para os outros em nome dessa exigência. Regressado Enrico, em 1922, tudo parece ter mudado, ainda muito esteja na mesma. Ontem o império, agora a Itália. A solidão da Patagónia era natural, fruto da distância. Agora a solidão torna-se pesada. Falha a união com Anita, mas Enrico procura compreender a circunstância, sem ódios nem dramas. A ânsia de perfeição conduz a nada – e o mar, ao fundo, o mágico Adriático, simboliza o encantamento e um certo vazio. “Mythos quer dizer conto, mas os mitos calam-se. De longe parece ouvir a sua voz narrando histórias fabulosas, mas mal nos aproximamos essa voz apaga-se, talvez fosse só o vento que passava entre pedras antigas e agora também esse vento amainou. Quem palra são os filólogos que glosam essas histórias perdidas e esses silêncios. O comentário do mito é o romance da sua inexistência, enfeitada com muitas palavras. À parte Tolstoi, Enrico não ama os romances, palavreados verbosos bons para divertirem uns convivas, não certamente para serem escritos nem tão pouco lidos”. Assistimos a uma espécie de combate silencioso até à morte, em 1959, onde apenas se demonstra a incapacidade para superar as limitações e os constrangimentos. E, ironia das ironias, quando é publicado já nos nossos dias o “Epistolário” de Carlo Michelstaedter é incluída uma misteriosa anotação, segundo a qual o filósofo Enrico Mreule morreu em Umago, no ano de 1933, como se os seus últimos vinte e seis de vida de angústias, dúvidas e provações não tivessem existido, ou tivessem sido vãos…


Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter