A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

A partir de hoje comentarei um livro por semana. Desde os clássicos a livros acabados de sair, do romance ao ensaio, da prosa à poesia, tratarei de reflectir a partir da leitura, num tempo em que as novas tecnologias longe de nos afastarem dos livros podem aproximar-nos deles. E oxalá este exercício constitua incentivo à leitura, procurando agitar as águas e abrir pistas de pensamento e acção.

UM LIVRO POR SEMANA
De 10 a 16 de Outubro de 2005


A partir de hoje comentarei um livro por semana. Desde os clássicos a livros acabados de sair, do romance ao ensaio, da prosa à poesia, tratarei de reflectir a partir da leitura, num tempo em que as novas tecnologias longe de nos afastarem dos livros podem aproximar-nos deles. E oxalá este exercício constitua incentivo à leitura, procurando agitar as águas e abrir pistas de pensamento e acção. Hoje, ainda no rescaldo da viagem brasileira do CNC, falo-vos de Josué Montello e do seu romance “Noite sobre Alcântara”. Cidade fantasmagórica, Alcântara, em frente a São Luís do Maranhão, no outro lado da baía de São Marcos, é a recordação de um tempo que já não volta. Montello ajuda-nos na decifração do espírito do lugar: “Na calma da tarde ensolarada, vou andando pelo Largo da Matriz, e não encontro uma única pessoa. Tudo quieto. Não ouço rumor de vida à minha volta. Nem sequer uma revoada de andorinhas estala o seu alarido feliz por cima dos telhados escuros” (Livros do Brasil, 1989, p. 15). Mas recuemos no tempo. A cidade foi rica e opulenta. Fundada em 1648, foi centro da actividade económica da produção da cana-de-açucar e do algodão até à abolição da escravatura, no terceiro quartel do século XIX. É um conjunto arquitectónico dos séculos XVII e XVIII paradoxalmente preservado, entre ruínas e memórias, pelo abandono dos seus habitantes quando a decadência se tornou inexorável. “Por estas calçadas compridas, ao pé dos sobrados que rodeiam o largo, retiniram esporas de cavaleiros, tacões de botas de soldados e sapatões ferrados de graves ouvidores. Estas pedras foram pisadas por sinhás-donas e sinhazinhas. Nelas também estalou o pleque-pleque das sandálias de seda das negras de cintura fina, peito cheio e bunda redonda, que não se deitavam com brancos, negros e mulatos de outro lugar” (p. 16). Em cada sobrado há uma história para contar. Há amores contrariados, cumplicidades de escravos e senhores, vitórias e derrotas, tiranias e liberalidades. A pouco e pouco, o sonho foi-se desvanecendo. Acabou a escravatura, as técnicas mudaram, o solo foi excessivamente usado, a guerra da Secessão americana teve o seu fim e a concorrência do algodão americano tornou-se insustentável. A independência do Brasil, o melhor acesso de transportes a outras zonas do país, tudo levou a que o final do século XIX tenha sido um autêntico pesadelo. A cidade começou a ser abandonada e depois saqueada. “Muita gente me tem dito que a vida em Alcântara já não é o que era – embora continue com muitas carruagens nas ruas, muitas festas, muitos escravos, muito luxo e novos sobrados na Rua da Bela Vista” (p. 55). É Maria Olívia quem o diz em 1869, quase sem acreditar. Trinta anos depois, Natalino fala de um cemitério: “As casas fechadas eram sepulcros” (p. 294). E ele é perseguido pelos fantasmas, uns vagos, abstractos, outros com presença bem individualizada, como Honorina… Maria Olívia aguenta estoicamente a solidão quase incompreensível. Alcântara é o mundo e as personagens digladiam-se contra o fatalismo de um destino sem piedade. A decadência desenvolve-se perante o nosso olhar, com pequenos passos, quase imperceptíveis. Natalino, no virar do novo século, ainda quis acreditar e ter esperança, “com o rosto voltado para a frente, com interesse no futuro” (p. 291). E encontramos os dois palácios inacabados dos barões de Mearim e Pindaré. O Imperador D. Pedro II poderia ter sido a salvação da cidade decadente. Se na vinda ou na ida de uma viagem aos Estados Unidos tivesse parado no Maranhão. Então visitaria Alcântara e faria jus à sua glória. “Se vier temos de estar preparados” (p. 135). Mas tudo ficou no se…

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